Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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Descrição de chapéu Rússia

Como você pode vender tanques de guerra e reconstruir escolas?

Na educação, os prejuízos da pandemia têm sido comparados aos de guerras

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Dentre as tantas imagens desesperadoras da guerra na Ucrânia estão as de escolas em ruínas. Em quanto tempo se reconstrói uma escola, uma comunidade, um país e toda uma geração de crianças e jovens obrigada a parar de estudar para fugir de bombas?

Na educação, os prejuízos da pandemia têm sido comparados aos de guerras, e as cenas chocantes de devastação que circulam nos últimos dias dão uma dimensão da força dessa metáfora. A cada nova avaliação ou pesquisa que atestam os impactos negativos do fechamento das escolas e do confinamento na infância e na adolescência, cresce a corrente que defende que se lide com isso como num pós-guerra.

Parece infinita a sequência de dados trágicos do reflexo da pandemia na educação. O mais recente desses resultados no Brasil foi divulgado nesta quarta-feira (2) pela Secretaria de Educação de São Paulo: os alunos do ensino médio tiveram o pior desempenho da prova do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar) em toda a série histórica, desde 2010.

Tanque ucraniano destruído em frente a um escola da cidade de Kharkiv; o prédio escolar também foi alvo do bombardeio russo
Tanque ucraniano destruído em frente a um escola da cidade de Kharkiv; o prédio escolar também foi alvo do bombardeio russo - Vitaliy Gnidyi - 28.fev.22/Reuters

A média em matemática de quem se formou em 2021, por exemplo, foi equivalente à que seria adequada para um aluno do 7º ano. Em língua portuguesa, os formandos obtiveram uma nota que deveria ser a do 8º ano.

São de cinco a seis anos de defasagem. Sem meias-palavras, o secretário de Educação, Rossieli Soares, disse que o ensino médio, que já estava no "fundo do poço" antes da pandemia, ficou "ainda pior" e que não é possível calcular o tempo de recuperação.

E estamos falando de São Paulo, estado com mais recursos e que foi pioneiro no país na retomada de aulas presenciais, embora tenha mantido escolas fechadas por quase todo o ano de 2020 e sem a presença de todos os alunos até outubro de 2021.

Uma outra informação, também divulgada nesta quarta-feira (2), atestou o quão ampla foi a devastação da pandemia na saúde mental: de acordo com a Organização Mundial da Saúde, os casos de ansiedade e depressão aumentaram em mais de 25% no mundo todo. O estudo da OMS indicou ainda que, desde o início da crise da Covid-19, existe maior risco, dentre os jovens, de tentativas de suicídio e de autolesões.

Cruzando as duas notícias, temos o seguinte: uma sala de aula na pós-pandemia não só apresenta atraso no ensino e desigualdade entre o nível de aprendizado de cada aluno, como crianças e adolescentes que carregam traumas, estão com ansiedade, depressão e que, em casos mais graves, podem se cortar e tentar o suicídio.

Retrato de Salman Khan, criador da Khan Academy, plataforma de educação online
Salman Khan, criador da Khan Academy, plataforma de educação online - Divulgação

Fica claro que só se pode ter esperança de recuperação se houver uma mobilização profunda da sociedade, como em regiões devastadas por guerras ou tragédias ambientais. É necessário o desenvolvimento de "planos de recuperação de desastres", conforme falou à Folha o educador norte-americano Salman Khan, fundador da Khan Academy, uma das maiores plataformas de educação gratuita do mundo.

E os planos de recuperação não devem ser apenas do poder público, ainda que dependa em grande parte dele, que, no caso do Brasil, precisa, entre outras urgências, acelerar a implementação do ensino em tempo integral. Instituições, empresas, famílias, todos devem se perguntar o que podem fazer pelas escolas.

O ensino médio, por exemplo, especialmente prejudicado pela pandemia, como vimos, e no qual os alunos têm menos tempo para a recuperação, abre uma série de possibilidades para o engajamento da sociedade. Com o novo currículo, obrigatório a partir deste ano, devem ser oferecidas as matérias eletivas, complementares às obrigatórias.

A ideia dessas disciplinas é que ampliem o repertório dos estudantes e que desenvolvam habilidades socioemocionais. Uma eletiva de teatro, por exemplo, pode ensinar história, geografia, português, capacidade de se comunicar, além de reforçar o sentimento de grupo e de ajudar a lidar com a ansiedade e a superar medos. Grupos de teatro amadores ou profissionais podem se associar às escolas para isso, e familiares e amigos dos estudantes, se oferecer para ajudar no figurino, cenário etc.

Escolas de elite de São Paulo já oferecem eletivas em parceria com universidades e empresas. O Dante Alighieri, por exemplo, entre mais de 70 eletivas, tem curso de produção de queijo ministrado por uma fábrica de laticínios, a Vitalatte, aulas de inteligência artificial com a empresa de tecnologia IBM, fórum de debates em colaboração com a USP e matérias de jornalismo e marketing com a ESPM.

Cooperações assim precisam se expandir para a rede privada de menor porte e, especialmente, para as escolas públicas. Para as empresas, ademais, é uma oportunidade de se alinhar com algo caro ao marketing atual, o conceito ESG, que é a sigla em inglês para responsabilidade social, com o ambiente e com a governança.

Devem-se buscar conexões das mais diversas, e os cursos podem mesclar escolas públicas e privadas, favorecendo uma troca benéfica a ambas. Um museu deve abrir as portas para ensinar história da arte, o planetário pode ser um espaço para uma eletiva de astronomia, ONGs e universidades podem ser parceiros em projetos de prevenção ao uso de drogas, ao suicídio, à violência, às fake news.

Além da diversificação no aprendizado, ampliam-se, com os alunos mais engajados, as chances de se recuperar os conteúdos obrigatórios, como a defasagem em matemática e língua portuguesa.

Se o conflito na Ucrânia nos remete às barbáries da Segunda Guerra, também esse passado pode nos trazer lições de reconstrução. Um bom exemplo para a educação é a história de uma vila no norte da Itália, devastada pelos bombardeios, em que famílias que haviam perdido tudo se reuniram para construir uma escola com o dinheiro da venda de seis cavalos e de um tanque de guerra abandonado pelos soldados alemães.

Nasceu ali um projeto de recuperação baseado na coletividade, no vínculo entre alunos, famílias e professores, em que o aprendizado é um processo de troca democrático e que respeita os interesses das crianças e dos jovens. O modelo, que valoriza as diversas formas de expressão do estudante, se espalhou por aquela região, a Reggio Emilia, e depois pelo mundo, sendo visto hoje como educação de vanguarda.

Quase 80 anos depois, é hora de vender cavalos, tanques e de reconstruir as escolas.

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