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Pedro e Paulo Markun

REPORTAGEM

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Como usar o metaverso na educação? Brasileira conta os 'segredos'

Aula do Virtual People, primeira experiência de ensino universitário em realidade virtual - Tobin Asher/VHIL
Aula do Virtual People, primeira experiência de ensino universitário em realidade virtual Imagem: Tobin Asher/VHIL

19/12/2021 04h00

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A primeira experiência de ensino universitário totalmente em realidade virtual, com os alunos usando avatares e Oculus Quest, aconteceu em junho deste ano, na Califórnia, nos Estados Unidos, em pleno Vale do Silício, e com a participação ativa de uma brasileira: Ana Carolina Muller Queiroz.

Ana Carolina juntou-se ao Laboratório de Realidades Virtuais da Universidade de Stanford, como pesquisadora de pós-doutorado, responsável pela área de educação há três anos, quando estava concluindo o doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano na USP. Prestes a completar 20 anos, o Laboratório é um centro de referência no estudo da realidade virtual e tem como líder Jeremy Bailenson, professor de comunicação.

No curso, batizado de Virtual People, a realidade virtual foi o tema e também o meio dominante do processo de aprendizado, que incluiu aulas normais também, digamos. As conversas entre professor e alunos em seus avatares resultaram em mais de três mil horas de imersão de 263 estudantes por meses a fio.

"Até onde sei", anotou Bailenson num comunicado, "ninguém conectou em rede centenas de alunos (com) fones de ouvido de RV por meses a fio na história da realidade virtual, ou mesmo na história do ensino."

No curso, os alunos fizeram pesquisas de campo virtuais, protagonizaram debates em grupo e participaram de shows e apresentações. Além dos oculus, Bailenson valeu-se de um software de comunicação virtual chamado Engaje, destinado a treinamento e educação.

Ana Carolina vive na Califórnia, mas segue envolvida com seu país: com recursos obtidos junto ao Instituto EDP, uma organização não-governamental, está distribuindo Oculus Quest para 40 escolas públicas de diversas regiões brasileiras, num projeto que pretende entender o impacto possível dessa tecnologia e do metaverso no aprendizado.

Em Stanford, ela trabalha também com informações coletadas remotamente em aquários, museus, escolas e universidades em países que tenham o inglês como primeira ou segunda língua e que usem recursos de realidade virtual em seu dia a dia.

Máximo de 20 minutos no metaverso por dia

Ana Carolina conversou por mais de uma hora com os colunistas por videoconferência. Ela reconhece que o conceito do metaverso ainda está nebuloso, por ser muito novo e impreciso, mas acredita que esse território digital vai ter um impacto considerável na educação, começando pelos países desenvolvidos, como aconteceu, por exemplo, com os smartphones.

"O metaverso facilita muito o ensino de conceitos abstratos, como o da acidificação do oceano. Um processo não muito visível, muito longo e que as crianças têm dificuldade de assimilar, dada a sua abstração. As simulações e a imersão que o metaverso oferece aumentam a motivação, o engajamento e a autoeficácia. Eu espero que o metaverso proporcione isso, mas que continuemos a fazer aquilo que se pode fazer no face a face", diz.

"Aqui mesmo em Stanford, no Laboratório, nós que somos pesquisadores da área não ficamos mais de vinte minutos por dia com os oculus. Como psicóloga, sei quanto são importantes as interações sociais. Principalmente nos primeiros anos de vida —seja com pais, colegas, professores. Para mim, o metaverso é uma tecnologia para ser usada com crianças mais velhas, a partir do ensino médio e, ainda assim, em ações muito bem planejadas e programadas. Para conhecer o deserto do Saara e seu ambiente, o metaverso é ótimo. Mas a discussão posterior à experiência não precisa, nem deve ser feita na realidade virtual", acrescenta.

A brasileira é uma defensora do ensino a distância, em determinadas circunstâncias:

"Nem toda solução deve ser usada para tudo. O EAD é muito importante para atingir pessoas que não teriam condições de ir a uma instituição de ensino. Pessoas que vivem em regiões muito remotas têm hoje acesso, via tecnologia, a informação e formação. Mas isso não quer dizer que tudo será remoto", afirma.

A brasileira recentemente realizou uma extensa pesquisa sobre o estresse do Zoom durante a pandemia. Sua conclusão: uma maneira de reduzir esse estresse é desativar a sua própria imagem na tela durante as conversas.

"Eu fiz uma pesquisa sobre a fadiga do Zoom e aplicamos a mais de quinze mil pessoas e comprovamos a sobrecarga cognitiva das videoconferências. A partir do momento em que sabemos disso, não vou fazer um curso unicamente baseado em videoconferências", afirma

Material educativo

Um dos objetivos do laboratório em que Ana Carolina trabalha é a construção de conteúdos educativos e, para isso, eles se valem da cooperação com outros departamentos da universidade. Ela estima que dentro de um ano, aproximadamente, já haverá conteúdos disponíveis de qualidade pelo menos nos países mais desenvolvidos.

"Um dos nossos projetos trata da acidificação dos oceanos. Cada cena virtual desenvolvida era submetida aos pesquisadores marinhos de Stanford para conferir se a quantidade de biodiversidade corresponde à da realidade, por exemplo. Esse nível de detalhe só as instituições com muitos recursos podem respeitar. Desenvolver conteúdo é caro e toma tempo, mas quando isso está pronto é possível escalar. Esse conteúdo sobre os oceanos está disponível para download no nosso site e já foi utilizado em mais de cem países. Não é muito diferente o que aconteceu com o recurso do PowerPoint. No começo, usávamos todos os recursos, sem limite e sem muita razão. Hoje todo mundo sabe usar esse recurso e as apresentações são muito mais limpas", diz.

Mas nem só de conteúdos de qualidade será feito o avanço da realidade virtual no ensino. Os professores ainda precisam aprender a usar essa ferramenta, ressalta Ana Carolina.

Para ela, a implementação de oculus de realidade virtual nas escolas não deve ser homogênea, mas adaptada a cada realidade. Nos Estados Unidos, as escolas podem aplicar para pequenos editais e algumas têm feito isso para implementar realidade virtual.

Para ensinar programação para os alunos, os oculus têm de ser de alta precisão e com caixas e sensoriamento fora. Se for para que os professores usem como experiência pedagógica ou desenvolvimento de programação, o resultado são salas especiais.

Aceitando smartphones no ensino

Ana Carolina reconhece que os smartphones ainda não foram incorporados ao processo de aprendizado, são rejeitados nas salas de aula, como se fossem um estorvo para o ensino. A pandemia mudou um pouco isso, mas ainda não houve mudanças, mas ela acha que isso pode acontecer em breve.

Durante seu mestrado, feito no Brasil, em 2010, ela constatou que havia 10% da população analfabeta e 20% de analfabetos funcionais. E que as crianças ficavam então, em média, quatro horas na frente das telas.

"Hoje, esses números devem estar desatualizados. Crianças ficam pelo menos seis horas na frente das telas. Será que não poderíamos usar isso para o aprendizado? Durante o mestrado, analisei mais de dois mil programas de televisão disponíveis no Brasil, em TV aberta, fechada, DVDs, em busca de conteúdos que apresentassem letras. Não fui muito além disso de propósito e encontrei apenas três programas que ofereciam isso e apenas um usando rimas, aliterações e outros mecanismos: o Vila Sésamo, da TV Cultura, exibido também pela TV Brasil na época. A mesma coisa deve acontecer com os oculus de realidade virtual. Em sua esmagadora maioria, os produtos hoje oferecidos são apenas de entretenimento. Mas isso pode e deve mudar, espero", afirma.

Você tem que estar no metaverso no futuro?

Ana Carolina não acredita numa difusão dos dispositivos que permitem entrar no metaverso na mesma velocidade com que os smartphones se popularizaram:

"Primeiro porque os oculus como o Quest nos distanciam da realidade, exigem total atenção. As empresas estão trabalhando para ser mais fácil de ser utilizado e mais incorporado ao dia a dia. E ainda há a questão do preço, muito elevado por enquanto, ainda que tenha caído bastante", diz.

"É isso que explica por que o Facebook lançou óculos em parceria com a Ray-Ban: acostumar o consumidor com a ideia de que pode acessar muita coisa a partir desse dispositivo. Quanto mais o preço cair, maior será a difusão. No Natal do ano passado, só consegui encontrar oculus em lojas muito especializadas. Neste Natal, ele está nas principais redes de distribuição como o Wallmart. Há mais de dez milhões de lares com oculus aqui nos Estados Unidos", completa

No futuro poderá haver algum tipo de exclusão digital de quem estiver fora do metaverso, perguntaram os colunistas. Ana Carolina não descarta a hipótese:

"Hoje, numa reunião com pesquisadores de Harvard, discutimos isso. O ambiente virtual tende a ser uma reprodução do ambiente real, em termos de desigualdades e condições sociais. Não queremos mexer na liberdade das pessoas sobre onde elas querem gastar seu tempo. Se numa sala de aula temos 10, 15% dos alunos sem condições de acessar o metaverso, por que vamos obrigar que façam isso?", argumenta.

"Além disso, é bem provável que os melhores aplicativos para realidade virtual sejam pagos —os gratuitos costumam ser menos eficientes. Isso indica que já passou da hora de garantir a inclusão digital no Brasil e em outros países. O governo brasileiro entende inclusão digital apenas como a oferta de computadores nas escolas, mas é muito mais do que isso. Se ainda estamos caminhando nesse campo, quanto a computadores e celulares, imagine no metaverso, que ainda é algo em construção", conclui