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REPORTAGEM

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Como ressocializar alguém que não teve o direito de ser sociável?

Cena do documentário Saudade Mundão - Divulgação/Catharina Scarpellini
Cena do documentário Saudade Mundão Imagem: Divulgação/Catharina Scarpellini
Babiy Querino

10/12/2020 13h17

Ressocializar: socializar-se novamente; voltar a fazer parte de uma sociedade: ressocializou o cidadão banido; ressocializou-se por amor à pátria. Voltar a possuir um convívio social…

Sociável: adjetivo Próprio para viver em sociedade; que tende para a vida em sociedade. De convívio agradável; civilizado, urbano, afável: caráter sociável e generoso. Que age com cortesia e civilidade; urbano, civilizado…

Para as diretoras do filme "Saudade Mundão", Julia Hannud e Catharina Scarpellini, que na época das filmagens estavam se formando na Faculdade de Cinema e Comunicação - FAAP, o foco principal era fazer um documentário. Após decidirem que iriam falar sobre o sistema carcerário, iniciaram algumas pesquisas e viram que as maiores referências sobre encarceramento sempre falavam da situação das prisões masculinas e pouco se sabia sobre as cadeias femininas.

Ainda dentro de suas pesquisas, sentiram que era inevitável e necessário adentrar em uma penitenciária para continuar o processo de pesquisa e filmagem. Houveram diversas dificuldades, pois sempre que apresentavam o projeto do filme para o responsável pela unidade, era negado, sempre que os responsáveis viam que elas queriam entrar no sistema carcerária para filmar, de cara já diziam não. Elas contam que isso foi importante, porque fez elas quererem entender o porquê de ser tão difícil entrar dentro de uma unidade prisional. Por que era tão complicado? Por que era tão inacessível?

Como a capital de São Paulo não oferecia opção, elas passaram a procurar no interior, onde acharam a Cadeia Pública Feminina de Franca. O responsável pela unidade era um delegado, que de cara perguntou se acreditavam em ressocialização. Sem saber o que dizer, com medo que a partir de sua resposta ele negasse a entrada delas na cadeia, disseram que acreditavam. O delegado riu e perguntou: "Como ressocializar alguém que nunca foi socializado?"

Foi com essa pergunta que ele permitiu a entrada delas na cadeia, com uma única condição: de que as próprias mulheres autorizassem as filmagens. E a partir de uma conversa após apresentarem o projeto para as detentas da Cadeia Pública de Franca, que Julia e Catharina obtiveram autorização para começar a rodar "Saudade Mundão".

Evocada por este delegado, a palavra RESSOCIALIZAÇÃO é muito utilizada como argumento pelo judiciário brasileiro quando o assunto é sistema carcerário, porém ela não se adequa a realidade dessas pessoas que em sua maioria são negras e periféricas. Cerca de 62,4% das mulheres encarceradas possuem o ensino médio incompleto, e 44% nem sequer completaram o ensino fundamental (INFOPEN, 2017).

Analisando as Leis de Execução Penal localizada no Planalto, temos os Artigos 1ª, 10ª e 25ª que dizem:

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

Art. 25. A assistência ao egresso consiste:

I - Na orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade;

Ou seja, não há de fato uma reintegração à sociedade, se essas pessoas já não são vistas como sociáveis. Algumas das estratégias de exclusão do sistema são a falta de oportunidades de educação, acesso à informação, saneamento básico, moradia… cerca de 90% da população carcerária já é posto à margem de acesso a direitos básicos como estes desde a infância.

Ainda mais se for um corpo preto!

Um dos exemplos é o caso que me levou a ser presa mesmo sem ter cometido crime algum. Através de uma acusação racista na qual utilizavam meu cabelo como fator de reconhecimento. Mesmo possuindo provas que comprovam minha inocência, sofri uma sentença de cinco anos e quatro meses na lei de 1/6, cumprindo o total de um ano e oito meses.

Atualmente no Brasil, 68% das mulheres encarceradas são negras e de acordo com os dados do INFOPEN (Jun/2017) 48,04% se declaram Pardas, 35,59% se declaram brancas, 15,51 declaram negras, 0,59% se declaram amarelas e 0,28% se declaram indígenas. A problemática é ainda maior quando vemos que 47,33% são mulheres com faixa etária entre 18 a 29 anos. Aproximadamente 64,48% são encarceradas por tráfico de drogas, 15,72% roubo, 4,96% furto e 8,47% homicídio. Aproximadamente 37,828 mil mulheres brasileiras vivem atrás das grades e esses números não param de crescer.

Sistema carcerário feminino no Brasil

O sistema carcerário no Brasil é um moedor de sonhos, muitas mulheres que são encarceradas perdem todo e qualquer tipo de esperança de uma vida digna sem olhares preconceituosos. O filme fala sobre mães, filhas e avós, que lutam diariamente para sobreviver e lidar com o fardo que é viver numa cadeia.

"Saudade Mundão" é um filme que vai contra tudo isso, com reconhecimento de lugar de fala traz uma escuta atenta de pessoas que aos olhos da sociedade e do judiciário não possuem direito e a capacidade de narrar suas vivências e o que as levaram ao encarceramento. E é de um sistema de encarceramento com muitas especificidades que estamos falando: o encarceramento feminino.

O que sabemos sobre a situação de mães encarceradas?

Em maio de 2018 o senado aprovou o PLS 64/2018, lei que dá o direito à prisão domiciliar para gestantes, mães ou responsáveis de crianças de até 12 anos incompletos, que não respondem por crimes hediondos. Mas no mapeamento realizado em março de 2020 pelo Depen, cerca de 12,821 mil mulheres encarceradas são mães de crianças de até 12 anos.

Existem milhares de gestantes que se encontram em unidades sem nenhuma estrutura e acompanhamento médico e celas lotadas, isso faz com que haja diversas complicações na gestação desde o pré natal ao neonatal. Fora que muitas acabam desenvolvendo depressão pós-parto, passando a rejeitar os filhos ou até mesmo atentar contra sua própria vida.

Após seis meses de nascido, o bebê é separado de sua mãe e, caso não haja um familiar disponível para tomar conta, ele é encaminhado para um abrigo. Muitas não conseguem pegar seus filhos de volta após o cumprimento da pena por questões judiciais e por não terem onde morar. Já pararam pra se perguntar o que pensam e o que sentem essas mães?

Grande parte dessas mulheres que já tinha outros filhos na rua sofrem ao pensar "o que meu filho vai pensar da mãe", pois essas crianças são criadas por suas famílias e infelizmente muitas abandonam e passam a demonizá-las, fazendo com que a criança não tenha nenhum contato com a mãe e a veja como monstro

saudade mundao - Divulgação/Catharina Scarpellini - Divulgação/Catharina Scarpellini
Cena do documentário Saudade Mundão
Imagem: Divulgação/Catharina Scarpellini

Doenças no encarceramento

Atualmente mais da metade das mulheres encarceradas sofrem com diversas doenças: respiratórias, crônicas, infecções sexualmente transmissíveis, hipertensão, diabetes, depressão, trombose, etc... Que em sua maioria são contraídas dentro da própria unidade.

"Em 2015 fui presa com os dentes do fundo quebrados após apanhar muito da polícia, ainda tinha alguns cacos que me faziam sentir muita dor, mas eu estava aguardando minha audiência, pois tinha fé que iria embora. Após vir à sentença de 7 anos resolvi buscar tratamento para arrumar meus dentes, mas mal sabia eu que seria condenada há algo muito pior. Após terminar o tratamento, por 3 vezes tive a notícia de que estava com HIV e a unidade dizia que eu havia contraído na rua, mas como fazia pouco tempo que eu tinha ganhado bebê, era impossível que eu tivesse contraído HIV antes, tinha todos os exames em dia. Hoje em liberdade vejo o quão difícil é para mim conseguir levar minha vida, pois por uma negligência da unidade e por não esterilizar corretamente os aparelhos, acabei contraindo uma doença e luto para sobreviver e trabalhar, mesmo sabendo que ainda há muito preconceito na sociedade.

Essa é parte da minha história atrás das grades, lá dentro eles não estão nem aí para as presidiárias e o dinheiro que o governo diz gastar conosco não condiz com o tratamento e recursos que são oferecidos".

*(Relato de uma companheira que conheci ainda presa e prefere não se identificar).

Não há informações na cadeia sobre prevenção, medicamentos e atendimento médico. São muitas as negligências, tudo começa a partir do "KIT" que as unidades prisionais fornecem. Ao receber meu primeiro kit fiquei extremamente assustada e revoltada, pois, as funcionárias os entregavam em sacos pretos e o que conteúdo de dentro não durava nem para uma semana.

Cada "KIT" que é fornecido, contém: um colchão fino, um cobertor fino, dois pares de roupa, dois sabonetes, uma pasta de dente, uma toalha e uma escova. Já em estrutura são: banhos gelados, alimentação precária e celas lotadas. Facilitando o contágio e agravamento dessas doenças.

E como há uma precariedade no atendimento médico, muitas dessas mulheres acabam se automedicando com remédios que recebem no jumbo. Isso é ainda pior pois sem um acompanhamento e medicamento apropriado muitos casos são irreversíveis.

Em "Saudade Mundão" a gente consegue ter acesso e ver um pouco dessa precariedade, e também as redes de apoio e solidariedade que as pessoas encarceradas estabelecem para sobreviver: a organização coletiva de festa de dia das crianças, as trocas de afeto e do apoio que algumas recebem da família com o jumbo...

saudade - Divulgação/Catharina Scarpellini - Divulgação/Catharina Scarpellini
Cena do documentário Saudade Mundão
Imagem: Divulgação/Catharina Scarpellini

Você sabe o que é jumbo?

O jumbo são itens que as presas podem receber de seus familiares, como por exemplo roupas, produtos de higiene pessoal, alimentos, produtos de limpeza, cigarro e medicamentos. E é de extrema importância pois o sistema prisional não arca com as nossas necessidades básicas, como vimos acima.

Ser LGBTQI+ no sistema carcerário feminino

Você já se perguntou, se há alguma informação sobre identidade de gênero nas cadeias femininas? A resposta é não. É importante ressaltar que muitas pessoas da comunidade LGBTQI+ que são encarceradas, não tem contato com informações sobre identidade de gênero, muitas não sabem o significado dessas siglas e se deparam com uma realidade totalmente machista e atrasado comparado aos avanços que temos. É como se vivessem em outro mundo inclusive com outras palavras para designar identidade de gênero e orientação sexual como, MULHERISSIMAS (Mulheres Cis), ENTENDIDAS (Lésbicas e Bissexuais) e SAPATÃO (Homem Trans).

A diferença entre entendida e sapatão no sistema carcerário feminino está muito relacionado à aparência física. Você sabe que uma pessoa é entendida pelos cabelos longos e às vezes maquiagem. O sapatão também é caracterizado pela aparência física, cabelo curto e por já assumirem uma postura masculinizada. Isso faz que muitas "entendidas", para se adaptar, assumam essa postura também.

"Pelo fato de estarmos presos numa cadeia com mais de 5 mil mulheres presas, precisamos ter uma postura adequada, pois como temos o perfil de "homem", tínhamos que nos comportar como um, porque haviam muitas mulheres casadas com homens, sapatões e entendidas, tendo essa postura masculinizada evitávamos brigas ou qualquer tipo de problema. Uma das maiores humilhações que já passei, foi pagar o peladão (ficar nu para a revista) na frente da guarda e geralmente haviam outras mulheres. Não temos nenhuma orientação sobre doenças sexualmente transmissíveis, a única coisa que vi foi um panfleto explicando mais ou menos sobre Sífilis. E tinham muitas pessoas infectadas que não sabiam e se relacionavam normalmente".

*(Relato de uma companheira que conheci ainda presa e prefere não se identificar).

A desinformação nas cadeias femininas faz com que haja diversos questionamentos sobre sexualidade sem resposta, e é importante ressaltar que muitas mulheres descobrem a sua sexualidade já encarceradas, dentro de um lugar onde há uma maior perpetuação do machismo.

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Cena do documentário Saudade Mundão
Imagem: Divulgação/Catharina Scarpellini

Encarceramento em massa da população negra

Nas cadeias brasileiras cerca de 68% das mulheres encarceradas são negras. E o sistema escravocrata implantado no Brasil é o principal fator do encarceramento em massa. É preciso se atentar que grande parte das leis que rodeiam a Justiça Criminal tem influência do processo de colonização histórico do Brasil. Mesmo após a abolição, o corpo negro não era livre, sua cultura já era marginalizada, além das diversas leis criadas que os proibiam de exercer qualquer tipo de estudo, trabalho, moradia e atividades de lazer. Um dos exemplos é a lei de 11 de outubro de 1820 - Lei dos Vadios e Capoeira:

Art. 399.

Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes (…)

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão celular por dois a seis meses.

Quem andava pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada após a abolição?

A cor predominante dos presídios era e continua sendo negra!

Passei por três penitenciárias em um ano e oito meses e em todas elas 90% das mulheres eram negras!

Aproximadamente 70% das prisões são injustas, causadas por características racistas que são utilizadas em reconhecimentos fotográficos e forjamento policial. E um deles é a Lei 11.343, mais conhecida como Lei de Drogas, em 2005 cerca de 9% das pessoas encarceradas respondiam por crimes de tráfico de drogas, já em 2014 essa porcentagem sobe para 28%. Os dados são pouco atualizados, mas essa porcentagem não para de crescer.

Agora pensa comigo: Se mais da metade das mulheres encarceradas são negras, jovens e periféricas, no qual 64,48% são presas por tráfico de drogas, essa guerra tem alvo, classe social, idade e cor. A guerra às drogas contribui para o encarceramento e o genocídio da população negra.

Você já parou pra pensar na solidão da mulher negra encarcerada e o que isso causa?

Os maiores casos de abandono estão mais do que ligados à cor da pele. A solidão da mulher negra se inicia no seu nascimento, sem ter o pai ou até mesmo a mãe ao seu lado. Desde crianças não se vêem como alguém amável e por este motivo fazem o possível e impossível para que seus parceiros não as abandonem. Mesmo que isso as leve para cadeia.

Se uma pessoa diz ser antirracista e ignora o fato de que Vidas Carcerárias Importam, ela é racista!

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Cena do documentário Saudade Mundão
Imagem: Divulgação/Catharina Scarpellini

Mais do que números. Histórias!

Para o judiciário brasileiro a matrícula de um réu, é mais importante do que as circunstâncias

que o levou a possuí-la. E para muitos de nossa sociedade civil "bandido bom é bandido morto". Por isso a importância de projetos como SAUDADE MUNDÃO e de outros que levam minimamente informação sobre o sistema prisional para a sociedade e também dão acolhimento para essas mulheres encarceradas. Muitas não sabem expressar e identificar os diferentes abusos que já sofreram e sofrem, não se reconhecem enquanto mulheres negras e não se veem merecedoras de amor. Guardam suas dores porque sabem que para o judiciário isso não importa e também acabam se vendo números.

Mas e você, já parou pra pensar na história por trás dos números?

"Saudade Mundão" é uma oportunidade para isso. O filme só pôde existir a partir do momento que as duas diretoras entraram e conversaram com as mulheres da Cadeia de Franca, e estas questões, presentes na realidade de todo o sistema carcerário, começaram a surgir.

Catharina conta que durante as filmagens pôde dividir com as protagonistas "as suas angústias, decepções, sonhos e desejos". Segundo ela, "essas mulheres foram negligenciadas pela própria sociedade muito antes de irem para a cadeia. O encarceramento em massa e a ineficácia do sistema carcerário como um todo é um assunto urgente, ele se agrava diariamente. Precisamos trazer sempre mais debates sobre o tema. Acredito que só assim pode haver mudança e ainda estamos muito longe disso acontecer".

Para Julia, o filme é resultado do que elas escutavam das personagens muitas vezes "com a câmera desligada". "O filme era o registro de um processo, mas o processo em si foi muito maior do que o filme", explica. Foram quatro anos de processo entre as filmagens, a finalização e "agora o filme está finalmente indo para o mundão".

"Levei dentro do meu peito a responsabilidade de fazer o resultado desse processo e a voz dessas mulheres guerreiras de se ecoarem", afirma Julia. Depois de feito o filme, o trabalho foi direcionado para que essas vozes não ficassem para dentro dos muros, principalmente no momento em que enfrentamos um governo fascista, racista e que acredita que um sistema punitivista ainda seja eficaz para alguma coisa", completa.

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Cena do documentário Saudade Mundão
Imagem: Divulgação/Catharina Scarpellini

Serviço

SAUDADE MUNDÃO é distribuído pela Descoloniza Filmes e está disponível nas plataformas iTunes / Apple TV Google Play | YouTube Movies | Watch TV | Net Now | Vivo Play | Sky Play.