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Como funcionam as escolas que serão militarizadas com financiamento do governo Bolsonaro

Autoritarismo, professores cerceados e porte de armas dentro das escolas são alguns dos problemas apontados por especialistas

Marcelo Camargo/ABr
Marcelo Camargo/ABr
Nas escolas militarizadas, estudantes são submetidos a controle estrito de costumes, incluindo cortes de cabelo e uso de acessórios

Brasil de Fato – Em 2020, o Ministério da Educação (MEC) vai canalizar R$ 54 milhões para as unidades atendidas pelo Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, cujo projeto-piloto terá como alvo 19 instituições da região Norte, 12 do Sul, 10 do Centro-Oeste, oito do Nordeste e cinco do Sudeste – escolas que serão militarizadas. O balanço foi divulgado nesta quinta-feira (21), em Brasília (DF), após uma seleção feita pelo MEC entre as unidades de 679 municípios das cinco regiões que se candidataram ao programa.

Diferentemente do modelo aplicado nas escolas integralmente militares, que são mantidas pelas Forças Armadas, o escopo do novo programa prevê uma gestão compartilhada entre professores civis e militares.

Neste sistema, os educadores e as secretarias estaduais de educação respondem pelos currículos, enquanto aos agentes cabe a atuação como monitores na gestão das unidades.

A doutrina militar nas escolas

Já tendo sido implantado em alguns lugares do país em anos anteriores, o modelo de educação cívico-militar é alvo de protestos de diferentes lados, incluindo professores, alunos, pesquisadores e outros especialistas, para os quais o sistema aponta para um avanço do autoritarismo sobre a educação. A preocupação se baseia especialmente nas normativas aplicadas por escolas militarizadas.

Em Goiás, por exemplo, onde existem 60 unidades com esse perfil, os códigos de conduta consideram como infração leve a conduta do aluno que utilizar “armações (de óculos) de cores esdrúxulas” ou unhas consideradas “fora do padrão”, por exemplo.

O uso de barba, bigode, costeleta, cabelos tingidos “de forma extravagante” ou com cortes apontados como avessos ao regulamento são enquadrados como transgressão média.

Típica da doutrina militar, a não prestação de continência aos agentes também é classificada como tal, bem como a recusa para participar de eventos e desfiles das escolas.

Deixar de zelar pelo bom nome do colégio, manter contato físico que sugira envolvimento afetivo ou “desrespeitar os símbolos nacionais” são atitudes que podem levar à expulsão do aluno, sendo consideradas como transgressões graves.

Autoritarismo e educação

No Ceará, onde haverá duas unidades do projeto-piloto do governo federal, as normas colecionam críticas de atores da sociedade civil organizada, como é o caso do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), integrante da Campanha Nacional pelo Direto à Educação.

“Na sociedade em que a gente vive, que é uma democracia, o investimento público deve ser em políticas que combinem educação de qualidade, democracia e cidadania. A gente acha que essa aposta em um modelo de escola cívico-militar é uma aposta em uma educação antidemocrática e autoritária”, argumenta a coordenadora do Núcleo de Atendimento da entidade, Marina Araújo Braz.

Ela sublinha que a configuração que norteia essas unidades educacionais viola os princípios da liberdade de aprender, de ensinar, da gestão democrática do ensino e do pluralismo de ideias. “Isso significa retroceder naquilo que se conquistou na Constituição, na LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], nos planos de educação. Com esse modelo de escola, até a participação da comunidade escolar fica prejudicada, porque se tem um modelo de hierarquia, em que a gestão fica sob controle de militares. A gente não tem a possibilidade do exercício da gestão democrática”, complementa.

Marcelo Camargo/ABr

Aposta em um modelo de escola cívico-militar é uma aposta em uma educação antidemocrática e autoritária”, diz Cedeca-CE

Para a pesquisadora Ana Penido, do Instituto Tricontinental, muitas vezes os pais procuram essas unidades para matricular os filhos movidos por falsas expectativas. “Em primeiro lugar, por uma ilusão de que, com a adoção de padrões comportamentais mais rigorosos, como o corte de cabelo, seus filhos estarão protegidos das grandes questões da adolescência e da juventude, como o contato com as drogas, a vivência da sexualidade e outras coisas. Mas esses são problemas complexos, impossíveis de se resolver com a utilização de um uniforme ou a proibição de tintura nos cabelos”, aponta.

Violência policial e uso de armas

No Ceará, onde os índices de violência saltam aos olhos, o Cedeca levanta uma preocupação com a relação entre a violência policial e as mortes de adolescentes. Dados do Comitê Cearense pela Prevenção dos Homicídios na Adolescência mostram, por exemplo, que 73% dos jovens assassinados nessa faixa etária no estado sofreram violência policial.

“É um número que comprova que esse conflito é fático. Se eu coloco policiais militares dentro de escolas públicas, como eu vou tratar da questão da violência? Porque, comprovadamente, como a violência se expressa entre policiais e comunidades? Através da intimidação, da violência, da estigmatização dos adolescentes e negros da periferia”, explica Ana Penido.

O uso de armas por agentes em escolas militarizadas preocupa quem estuda ou já estudou nesse tipo de unidade, como é o caso da universitária C.L., de 20 anos, ex-aluna do Colégio da Polícia Militar de Goiás Fernando Pessoa. Atualmente estudante de Pedagogia, ela considera que os agentes militares não teriam o preparo necessário para lidar com as questões do ambiente escolar.

“A sargento saiu correndo segurando na arma e já chegou pronta pra atirar. Ficamos em choque”

“Uma vez, estávamos no aniversário de uma sargento da escola e os alunos montaram uma surpresa pra ela, pra comemorar, e aí, pra chamá-la sem que ela desconfiasse da surpresa, inventaram que um estudante estaria brigando com outro e que ela fosse ao local. Ela saiu correndo segurando na arma e já chegou lá pronta pra atirar. Ficamos em choque. Depois disso, contei pro meu pai, e ele não quis me deixar mais na escola”, narra C.L., acrescentando que se sente “traumatizada” diante das memórias que a experiência na escola deixou.

Também ex-aluno da unidade, o irmão da estudante, I.D., de 23 anos, afirma que se arrepende de ter passado pelo local.

“Eu me arrependo amargamente de ter estudado ali. Acho que eles prezam mais pela hierarquia, pelo respeito às patentes do que pelo ensino das matérias em si. Querem que você cante o hino da polícia, do Brasil, que marche no sol etc. Cheguei a ver meninas desmaiando por terem que marchar no sol. É como se fosse mais um exército do que um colégio”, critica o universitário.

Professores cerceados

O pesquisador Weslei Garcia ressalta que as imposições ditadas pela doutrina militar causam impactos também na atuação dos professores, comprometendo e limitando a participação desses profissionais no ambiente escolar.

Ao fazer uma pesquisa de mestrado com educadores do Colégio da Polícia Militar de Goiás Fernando Pessoa, onde os personagens ouvidos pela reportagem estudaram, Garcia identificou que isso se soma a outras questões.

Uma delas é o fato de muitos professores da rede pública não pertencerem ao quadro efetivo das unidades educacionais. Na unidade pesquisada, por exemplo, entre 12 educadores que tiveram o caso analisado, oito eram temporários.

“É como se fosse mais um exército do que um colégio”

“Isso é uma coisa que pesa. O professor de contrário temporário, que não é concursado, ele não questiona, não fala muito, porque a relação de trabalho dele é muito frágil. Ele não questiona porque tem medo de perder emprego, aí ele não tem autonomia, não consegue avançar [na relação com a escola]. Então, tinha professor que falava ‘eu não sou favorável, me assusta ter que trabalhar com alguém armado e fardado o dia inteiro, acho estranho, mas é o regime militar, então, aceito’.”

O Brasil de Fato tentou ouvir a escola a respeito das críticas feitas pelos ex-estudantes e pelo pesquisador, mas não conseguiu contato com a instituição.

Recursos do MEC

Segundo o MEC, no Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, cada instituição do projeto-piloto terá aporte total de R$ 1 milhão. Do total de R$ 54 milhões investidos na iniciativa, R$ 28 milhões serão destinados ao Ministério da Defesa para remunerar militares da reserva que irão atuar nas equipes.

Além de diferentes ressalvas ao modelo ideológico em que se baseiam as escolas militarizadas, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) critica a canalização das verbas para esse tipo de unidade.

O secretário de Assuntos Educacionais da entidade, Gilmar Soares, destaca que as escolas tradicionais da rede pública hoje são fortemente afetadas pelo Teto dos Gastos Públicos, que tem previsão de 20 anos de duração e atinge especialmente os investimentos sociais.

“O correto, na nossa avaliação, seria o governo lutar pelas reais necessidades das escolas públicas, pra que elas pudessem desenvolver o seu trabalho integralmente, em vez de injetar dinheiro incentivando escola militarizada. Hoje já há estudos que apontam que, se as unidades públicas recebessem o mesmo quantitativo de uma escola militar, com certeza as condições delas seriam outras”, argumenta.

“Guetos e subcidadãos”

Em meio às polêmicas, o assunto suscita atualmente manifestações junto ao sistema de Justiça, inclusive por conta de outros aspectos.

A APP-Sindicato, que reúne professores e servidores da rede pública do Paraná, oficiou o Ministério Público do Estado para pedir uma apuração sobre a situação de escolas paranaenses que foram militarizadas nos últimos tempos. A entidade questiona a cobrança de taxas por parte dessas unidades.

“Pra você entrar nessa escola militar, no mínimo 50% [das vagas] são só pra filhos de militares. E pro teste pra entrar nesse colégio, tem de pagar taxa. Depois, você paga taxa pra fazer matrícula, paga a taxa pra ter uniforme militar e, depois, tem que pagar cerca de R$ 360 por ano pra APMF [Associação de Pais, Mestres e Funcionários] da escola”, exemplifica o secretário de Assuntos Jurídicos, Mário Sérgio de Souza.

A entidade aponta que as exigências ferem o artigo 206 da Constituição Federal, segundo o qual deve haver igualdade de condições para o acesso e a permanência dos estudantes na escola pública. Com isso, a APP afirma que a política incentiva o recorte de classe social.

“Você começa a criar guetos e subcidadãos. Uns têm mais e outros têm menos. Uns podem mais, outros podem menos. As cobranças claramente violam a gratuidade do ensino”, critica o secretário.

O sindicato aguarda a manifestação do Ministério Público para avaliar medidas judiciais relacionadas ao tema.

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