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Celina Antônia Burke

Como as escolas podem ter influência positiva na autoestima de meninas e mulheres

Um bom trabalho socioemocional tem tudo a ver não só com a busca por igualdade de gênero, como com o respeito e a valorização das diferenças para alcançar resultados de excelência

No dia 11 de fevereiro, comemoramos o Dia Internacional das Meninas e Mulheres na Ciência, instituído pela ONU em 2015. É muito triste que ainda haja necessidade de dizermos que estamos na ciência, quando já deveria ser óbvio que podemos estar em todos os lugares. Por outro lado, é importante que estejamos conseguindo afirmar e reafirmar nosso valor nas áreas em que sempre fomos excluídas.

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A verdade é que ainda há muito pelo que lutar, e os últimos 15 anos em sala de aula têm me deixado cada vez mais convencida de que a educação precisa ir muito além do currículo atual. Um bom trabalho socioemocional tem tudo a ver não só com a busca por igualdade de gênero, como com o respeito e a valorização das diferenças para alcançar resultados de excelência. Essa é uma transformação cultural importante e deve começar na escola.

A formação socioemocional não é sobre “ensinar” a lidar com as emoções. Ou pelo menos não deveria ser. O ideal seria que os alunos e alunas pudessem assumir o protagonismo de sua formação intelectual e subjetiva. Isso inclui não apenas receber as informações corretas, mas entender o que acontece ao seu redor e os impactos das suas ações. Fazer com que o aluno aprenda a refletir sobre si, sobre o outro e sobre o mundo desde cedo pode formar um adulto com mais consciência e mais apto a lidar com conflitos de forma equilibrada e justa.

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Isso porque a falta de reflexão faz com que a criança ou o adolescente em formação caia em armadilhas que já foram experienciadas por seus professores, por sua família ou por pessoas próximas. Uma vez, conversando com uma aluna, ela me disse que não conseguia aprender matemática de jeito nenhum: estudava, tentava e não melhorava seu desempenho na matéria. Passava mal, sentia vontade de vomitar durante as provas. Investiguei um pouco mais, fiz perguntas e ela acabou chegando ao pai, que se encarregava de “ensinar” a matéria para a filha, sempre aos berros e irritado quando ela errava algum cálculo. A aluna estava iniciando o 9º ano muito preocupada porque passaria a ter matérias como física, o que, provavelmente, seria mais uma razão para brigas em casa. Outra aluna, ouvindo a conversa, comentou que seu padrasto, engenheiro, também se descontrolava constantemente quando tentava explicar algum exercício, fazendo com que ela perdesse a vontade de aprender.

Essa turma era especial: quando uma delas abordava um assunto delicado, rapidamente outras se juntavam ao grupo. Ouvi e me identifiquei com histórias que envolviam professores sexistas (“Vamos, meninos! Qual é a resposta? As meninas já desistiram, estão passando batom!”) ou com necessidades de poder mal resolvidas (“Minha matéria é impossível, ninguém gabarita minha prova”). Em seus relatos havia todo o tipo de descrédito e destruição da autoestima em um grupo em que a mais velha tinha 15 anos. O contraponto disso também foi identificado por elas: quando uma menina tinha alto desempenho nas matérias exatas havia um estranhamento — tanto no ambiente escolar quanto no familia — como se fosse algo inusitado.

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Esse momento resgatou as minhas próprias memórias. A lembrança insistente era a do meu pai batendo no meu rosto com uma prancheta, enquanto eu ainda tentava aprender adição e subtração, aos 6 anos. Essa noite, que ficou marcada entre tantas outras de impaciência, humilhação e violência, em vez de despertar meu interesse pelas ciências exatas, semeou o bloqueio que nasceu e me acompanhou durante toda a minha vida escolar e que me acompanha até hoje quando ajudo meu filho no dever de casa: minhas mãos automaticamente começam a suar quando tento ensiná-lo a resolver um cálculo.

Refletir sobre isso agora, vendo quem sou hoje, me fez pensar no quanto somos massacradas desde cedo, muitas vezes por quem deveria nos apoiar. Antes de me tornar professora, sempre achei que os traumas que tive em relação ao estudo fossem exclusividade de quem cresceu em um lar abusivo. No entanto, crianças e adolescentes — principalmente meninas — que vivem em lares mais estruturados e sem nenhum tipo de violência, também estão suscetíveis a esses traumas. As crenças limitantes são uma espécie de herança que seguimos passando adiante, muitas vezes sem refletir sobre as consequências que podemos gerar.

E se, muitas vezes, a destruição da nossa autoestima acontece dentro de casa, a grande catalisadora da mudança deve ser a escola. É lá que precisamos ter a chance de curar e trabalhar nossa subjetividade. Talvez, como educadores, estejamos perdendo tanto tempo focados em melhorar o desempenho escolar de nossos alunos, que não percebemos que provavelmente as notas seriam mais altas se as competências, habilidades e objetos de interesse de crianças e adolescentes fossem devidamente incentivados e trabalhados.

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Meu irmão nasceu paraplégico. E durante os 27 anos que viveu, viu crianças apontando para sua cadeira de rodas e sendo repreendidas pelos responsáveis, como se fosse “errado”  perguntarem o que ele tinha, ou por que estava ali e não andando como elas. Também não faz parte da formação socioemocional entender que existem pessoas com deficiência no mundo? Aprender a respeitar as diferenças — sejam elas um par de muletas ou o interesse especial por determinada matéria — é o vetor de uma grande mudança que terá impacto no bem-estar e na harmonia da sociedade.

Meu filho tem 12 anos. Desde que passei a poder escolher, sempre fiz questão que ele estudasse em escolas progressistas, na esperança de que tivesse menos chances de conviver com discursos de ódio e suas consequências. Tive péssimas experiências em grupos de pais de colégios anteriores, em que as piadas preconceituosas eram regra. Ainda assim, recentemente ele me disse que, durante a pandemia, alguns amigos mandaram mensagens insinuando que ele é homossexual.

Ele não estava incomodado com a “acusação” e sim com o fato de terem decidido por ele com base no fato de dançar, furar a orelha ou pintar o cabelo. A ideia de que ele passe a ter medo de quem é simplesmente porque as crianças não são educadas para a diversidade me deixa ainda mais certa da necessidade urgente de que esse trabalho seja realizado desde a primeira infância.

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Dentro da escola, hoje, tendemos a querer acalmar os ânimos, evitar a bagunça e até calar. Com cronogramas longos e prazos apertados, é compreensível que professores acabem agindo dessa forma, ainda que eu consiga pensar em poucas situações em que não é possível ser um educador com olhar atento e humanizado. A reflexão principal aqui é que o aluno agitado não é o único que deve ser observado. O aluno muito quieto, submisso, que tende a ser visto como “exemplar” ou “atento”, pode ter problemas ainda maiores, que terão impacto no seu futuro e poderiam ser amenizados se todas as escolas trabalhassem a escuta ativa. Em um ambiente acolhedor, os medos, angústias e inseguranças podem ser identificados de maneira adequada para evitar bloqueios imaginários.

Como diretora escolar, ouvi diversas vezes frases como “meu filho não quer nada”, “ela fica cinco minutos na frente do livro e desiste”, como se o adolescente escolhesse aquela postura e suas consequências. Provavelmente essas famílias buscavam o melhor para os seus filhos, mas o fato é que, na maioria das vezes, eu descobri que o aluno nunca havia sido ensinado a estudar: o que funciona melhor para seu cérebro, seu modo de pensar, sua dinâmica particular. Pessoas diferentes aprendem de maneira diferente. Bastava testar e encontrar o melhor método de organização e os alunos transformavam seus desempenhos. Me entristece pensar que tantos adultos acreditam, até hoje, que são burros ou incapazes porque tiravam notas baixas.

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Um trabalho socioemocional sólido impacta não só o aluno. A escola torna-se um ambiente mais seguro — tanto para alunos quanto para professores — há mais colaboração, troca e menos agressividade. As relações familiares e sociais ganham mais respeito e o próprio aluno cresce confiante porque sabe explorar suas competências e entende como sua inteligência específica pode contribuir para o mundo.

Em especial para as meninas, cientistas ou não, cultivar o senso crítico, a capacidade de identificar um discurso equivocado e saber quando e como lutar é o primeiro passo para afastar crenças limitantes e abraçar todas as possibilidades que seu futuro pode oferecer.

*Antônia Burke é professora e líder do programa socioemocional Raizes, do grupo Raiz Educação.