Por Fabiana Assis e Fabio Rodrigues, G1 São Carlos e Araraquara


Selo Pés Vermelhos — Foto: Arte G1 São Carlos e Araraquara

Os alunos da escola municipal Prof. Hermínio Pagotto, localizada na agrovila o assentamento Bela Vista, na zona rural de Araraquara (SP), não podem reclamar de monotonia. A sala de aula é só um dos muitos espaços onde eles desenvolvem o aprendizado.

Na realidade, toda a escola e até o espaço fora dela é uma grande sala de aula. Essa quebra de paradigma faz parte de um proposta pedagógica diferenciada, voltada para a valorização das riquezas e valores da comunidade assentada, que colheu muitos frutos: o resgate da autoestima das crianças, redução da evasão escolar e vários prêmios.

Atualmente estudam na escola 167 alunos, sendo que 119 no ensino fundamental, que vai do 1º ao 9º ano, e 48 na educação infantil. Além disso, os alunos de ensino médio que estudam na cidade recebem o projeto Jovem Aprendiz Rural, do Senar, e há ainda educação de adultos com Telecurso.

Mas nem sempre foi assim. Alcançar o nível de ensino da escola, elogiado por especialistas e entidades do setor de educação, foi resultado de luta e dedicação dos assentados e dos profissionais da escola.

Professor Reginaldo Anselmo Teixeira é morador do assentamento Bela Vista e dá aulas para os alunos da 5ª série — Foto: Fabio Rodrigues/G1

O G1 publica esta semana uma série especial de reportagens sobre o assentamento Bela Vista, que completou 30 anos.

Igual, mas diferente

O que faz a escola especial é a forma de ensinar, uma espécie de pedagogia do campo, que usa o universo da criança do assentamento na metodologia de ensino e nos diferentes projetos que compõem o aprendizado.

“O conteúdo programático é o mesmo, o da base nacional comum, afinal nossos alunos disputarão vaga no mercado de trabalho juntamente com o aluno da escola urbana. O diferencial é ensinar a partir da realidade do aluno”, explica o professor Reginaldo Anselmo Teixeira, 43 anos, filho de assentados e morador do Bela Vista há 30 anos.

Por toda a escola há canteiros de plantas medicinais e árvores frutíferas que criam criando um laboratório vivo para a experimentação dos alunos de todos os ciclos.

Alunos da escola Hermínio Pagotto, no assentamento Bela Vista em Araraquara, tem aulas em viveiro montado com sementes de árvores nativas da região — Foto: Reprodução EPTV

“No projeto de jardinagem que envolve o 1º, 2º e 7º anos, as próprias turmas cuidam dos jardins e trabalham isso junto com o conteúdo. Por exemplo, o 7º ano estava auxiliando o 2º numa mandala enquanto estavam estudando geometria com o professor de matemática. Eles faziam as medições, toda a preparação do canteiro enquanto o 2º ano estava aprendendo sobre sementes”, conta Teixeira.

Com o apoio da comunidade, os lotes do assentamento tornaram-se uma extensão da escola e uma espécie de laboratório para os alunos, que são recebidos pelos agricultores.

Uma dessas visitas aconteceu no início do 2º semestre letivo com alunos do 4º e do 5º anos. Eles coletaram diversos dados, com quantidade de árvores, árvores frutíferas, verduras, legumes, animais e que são usados ao longo de todo período e em diversas disciplinas.

“Faz um raio-x daquela propriedade e trazemos para a escola. Nós, professores, vamos transformar esses dados em recurso pedagógico, em material didático. Agora, no terceiro bimestre, nós estávamos estudando fração, porcentagem e número decimal. Eu utilizei o material que a gente coletou. Também no conteúdo de ciências que é na alimentação e cultural alimentar, no conteúdo de geografia que tinha o paralelo industrialização/ruralização. Então todos os temas que eu tenho que trabalhar no bimestre eu parto dessa coleta de dados”, exemplificou Teixeira.

Viveiro de mudas é um dos muitos espaços de aprendizagem na escola Hermínio Pagotto, no assentamento Bela Vista. — Foto: Reprodução EPTV

Outro projeto é o viveiro de mudas, conquistado com um dos prêmios que a escola recebeu. O local é palco da educação ambiental, usado dentro de diferentes disciplinas e ainda fornece mudas para a comunidade, para reflorestamento de áreas de minas e de nascentes de rios.

“Por aqui tem um monte de cultura plantada e a criança tem que entender que isso é importante, então quando a escola não vira as costas para esse mundo, ela valoriza esse espaço e está rompendo o paradigma que o mundo rural é o mundo de atraso, de que o urbano é o local de progresso, o rural pode ser um lugar de avanço desde que haja condições”, diz Teixeira.

A escola não tem nada de atrasada. As novas tecnologias também estão presentes no ensino e valorização das coisas do campo não impede o acesso dos estudantes ao moderno por meio do laboratório de ciências, de uma sala multimeios com retroprojetor, televisor e outros equipamentos e a sala de informática. Para completar a estrutura invejável, a escola tem ainda biblioteca, sala de leitura, playground e quadra esportiva.

Prêmios

A ousadia do projeto "Escola do Campo" conquistou muitos prêmios. O primeiro foi o de Gestão Pública e Cidadania da Fundação Getúlio Vargas, em 2004, no qual havia 1,2 mil concorrentes inscritos. Neste mesmo ano, a escola recebeu o I Prêmio Chopin Tavares de Lima, pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal de São Paulo (Cepam).

A escola obteve ainda o reconhecimento da Embraer que, entre os anos de 2007 e 2010, selecionou três projetos para receber apoio financeiro e se tornarem realidade: “Semeando Sonhos e Esperança”, que resultou no viveiro de mudas e no playground; “O Futuro na Ponta dos Dedos”, que equipou o laboratório de informática e “Palavra Vida”, que ampliou a biblioteca e permitiu o projeto de sacolinhas de leitura, que permitia que os alunos levassem livros, revistas e jornais para casa.

Escola fica bem no centro do assentamento Bela Vista — Foto: Arte G1/ Natã Silva Targina

Escola do campo

Mas essa nem sempre foi a realidade da educação no assentamento Bela Vista. No início da ocupação, a escola ficou fechada, os alunos iam para Araraquara estudar. As primeiras duas salas - uma que unia alunos de 1ª e 2ª séries e outra de 3ª e 4ª séries - foram abertas em 1990.

Com a abertura da escola, os assentados começam uma jornada para a melhoria da educação na agrovila, que durou 10 anos de mobilização pela municipalização da escola e ampliação do ensino no Bela Vista até que, durante uma conferência municipal de educação, em 2001, a ideia da Escola do Campo foi apresentada.

“Não existia um grupo de trabalho chamado de escola rural. A gente não tinha planejado isso porque as escolas rurais que existiam em Araraquara pertenciam ao estado. Mas dentro da conferência surgiu esse grupo e dentre as propostas apresentadas e aprovadas estava a municipalização das escolas rurais e, além disso, que essas escolas tivessem um projeto pedagógico que respeitasse as características, a trajetória, a comunidade”, conta coordenador executivo da educação básica de Araraquara, Alexandre Luiz Martins de Freitas, que, na época, era coordenador administrativo da Secretaria de Educação.

Educação no assentamento Bela Vista de Araraquara — Foto: Fabio Rodrigues/G1

O projeto demorou um ano para ser desenhado e foi feito com a participação de pais, alunos, professores, funcionários, lideranças comunitárias, pesquisadores de universidades e representantes da Secretaria de Educação. Ao fim, foi implantado na rede rural de ensino formada pelas escolas dos assentamentos Bela Vista e Monte Alegre e do distrito de Bueno de Andrada.

Em 2002, com a municipalização concluída, começou a transformação: o ensino que antes era até a 4ª série foi ampliado até o 9º ano, houve ampliação estrutural, com a construção de mais salas, laboratórios e até uma cozinha experimental.

Os professores também tiveram que passar por um processo de transformação da visão que tinham no campo e passaram a entender melhor como funcionava a rotina de sobrevivência das famílias na produção de alimentos.

Festa de inauguração da educação infantil na escola Hermínio Pagotto, no assentamento Bela Vista, em 2011 — Foto: Reprodução EPTV

Levou mais dez anos até a última conquista, que tornou a educação completa: a instalação da creche, em 2011, para atender a educação infantil. Agora, apenas os alunos de ensino médio têm que se deslocar para estudar.

Luta para estudar

A mudança do projeto pedagógico da Hermínio Pagotto foi essencial para o acesso e permanência das crianças do Bela Vista no ensino e a recuperação da autoestima. Antes da escola do campo, o índice de evasão superava os 15%, em 2004 já era zero.

A desistência de estudar aumentava depois que os alunos concluíam a 4ª série e tinham que estudar em Araraquara, enfrentando dificuldade de transporte e o bullying dos alunos da cidade, onde eram chamados de “pés vermelhos, sujos, encardidos”.

Alessandra Damiani Ferreira Teodoro foi aluna da escola do campo do assentamento Bela Vista e hoje é professora em outra escola do campo, no assentamento Monte Alegre — Foto: Fabiana Assis/G1

“Era muito difícil esse processo. Crianças de 11 anos tinham que ir para a cidade, estudar fora. Pegava ônibus às 10h30 para chegar à escola às 13h. Isso quando não chovia e o ônibus atolava. Lá era tudo diferente, a gente sofria muito preconceito. Para a gente não chegar sujo na escola, porque o uniforme era branco, a gente colocava uma camisa por cima, para não sofrer [bullying]. Quando abriu do 5º ao 9º aqui foi uma maravilha, era um outro mundo”, conta Alesssandra Damiani Ferreira Teodoro, de 30 anos, que se formou em Pedagogia da Terra e hoje dá aulas na escola do campo de outro assentamento de Araraquara, o Monte Alegre.

“Quando cheguei aqui eu já estudava, estava na 6ª série e essa escola estava fechada”, lembra o professor Teixeira que é filho de assentados e mudou-se para o Bela Vista em 1989. “A minha mãe me matriculou na cidade na 6ª série no período noturno. O maior conflito que enfrentamos foi a briga por educação. Só sobravam as escolas da periferia para os alunos que eram originários do assentamento. O meu caminho foi um pouco mais fácil porque eu despontava dentro dos estudos, mas isso não se aplicava para o restante. Muitos colegas concluíram o ensino fundamental até a 8ª serie e pararam porque não era atrativo. Além do fato de você ter que trabalhar o dia todo na roça, você ir para a escola à noite e aí o clima de receptividade não era muito bom por conta de você estar sempre cansado."

"A gente sofria preconceito porque nosso caderno não era branquinho por causa da terra. A gente ia vestida de cebola para a escola para poder tirar as peças de cima quando chegava. Eu tinha inveja tanto do caderno quanto dos tênis dos outros alunos, porque meu tênis, mesmo que eu lavasse dia sim dia não, tinha bordas vermelhas e os das crianças da cidade tinha bordas cinzas", lembra Silvani Silva, hoje coordenadora da Secretaria Municipal de Agricultura.

O professor Reginaldo Teixeira teve que estudar fora do assentamento e hoje comemora que seus alunos tem acesso à educação no lugar onde moram — Foto: Fabio Rodrigues/G1

Oportunidades

Os resultados da adaptação da forma de ensino à realidade dos alunos e a possibilidade de acesso à educação no local onde moram extrapolaram meros índices de evasão escolar e acabou por despertar o desejo de ir além nos estudos.

'Nos vestibulinhos, os nossos alunos se despontam. Em uma sala de 21 alunos, 1/3 passam em escolas na primeira chamada. Outro indicador é o acesso à universidade. Na ultima década houve um aumento muito grande do numero de jovens ocupando espaço na universidade públicas. A questão dos jovens que estão se envolvendo com agricultura familiar é um indicador também, não precisa sair do assentamento depois que estudar, é possível sair, estudar e voltar, assim como eu", afirma Teixeira.

Para a diretora Adriana Maria Morales Caravieri, que atuou por quase 20 anos na Hermínio Pagotto e ajudou na elaboração e na implantação da escola do campo no Bela Vista, além de ser uma das grandes responsáveis pelo seu sucesso, a pedagogia mais inclusiva, mais acolhedora e mais alinhada com a realidade das pessoas do assentamento influenciou a visão das oportunidades de vida para os filhos dos agricultores, que conquistaram uma situação de igualdade para disputar o mundo tanto dos estudos na universidade, quanto do trabalho.

“Houve um resgate da autoestima, eles se sentiram valorizados nos seus saberes e no seu ambiente. Foi um fortalecimento das raízes ao mesmo tempo em que abriu a possibilidade de dar asas que só o conhecimento oferece. A gente vislumbrava um futuro que ninguém era obrigado a ficar ali, mas porque não construir o seu conhecimento, avançar nele e depois voltar e contribuir. Assumir esses postos que são direito deles. Porque não ter um diretor de lá, um médico de lá, um cientista de lá?”

Escola do assentamento Bela Vista de Araraquara — Foto: Fabio Rodrigues/G1

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