Por Patricia Lauris, g1 Tocantins


Centro de ensino infantil no setor Santo Amaro é um dos que deve ser entregue até 2023 — Foto: Patricia Lauris/g1 Tocantins

A Constituição determina que o Poder Público é obrigado a ofertar educação infantil gratuita a crianças até cinco anos. Com o fim do período letivo se aproximando, as famílias de mais de 4 mil pequenos palmenses encerram mais um ano na fila para conseguir entrar em um dos Centros Municipais de Educação Infantil (Cmeis). Pela pouca oferta de vagas, pais falam da dificuldade e angústia que é precisar trabalhar e não ter com quem deixar as crianças. Muitos até procuraram a Justiça, mas essa fila não anda para a grande maioria.

Desde 2016 é anunciada a construção de Cmeis em Palmas. Em 2017, a gestão assinou ordem de serviço para o início das obras de sete unidades. Três delas seguem inacabadas. Na semana passada, a prefeitura disse que entregaria duas das obras neste ano e outra em 2023, criando assim cerca de 1.680 mil vagas. Mesmo assim pelo menos 2,4 mil crianças vão continuar desassitidas. (Veja posicionamento da Prefeitura ao final da reportagem)

É também desde 2016 que uma ação na Justiça proposta pelo Ministério Público do Estado (MPE), juntamente com a Defensoria Estadual (DPE) cobra providências para que a demanda seja atendida. O MPE também pediu, na última semana, que a prefeitura tivesse mais transparência no sistema de matrícula em geral, o SIM Palmas.

Muitas vezes a única saída que os pais encontram para conseguir uma vaga é recorrer aos órgãos de Justiça, uma verdadeira batalha para ter seus direitos garantidos.

Amanda Cristine Menezes Leal de Carvalho, de 40 anos e Fabiano Santos de Carvalho Feliciano, de 45, passam por essa dificuldade. Eles aguardam desde março deste ano por uma vaga para Gael, de dois anos. Mesmo ele tendo teoricamente a preferência por ser portador de Síndrome de Down e cardiopatia congênita, nunca conseguiu entrar para a Rede Municipal. Ironicamente, a mãe trabalha em uma escola municipal como professora, mas não consegue incluir o filho em uma creche, mesmo com todas as dificuldades.

Em março começou a luta do casal para que o filho tenha os atendimentos necessários na educação infantil, principalmente pela necessidade de acompanhamento especializado. No mesmo mês Amanda procurou a Defensoria Pública e foi orientada a buscar ajuda também no Ministério Público Estadual (MPE).

"Me cadastrei, fiz todo o processo direitinho. Não obtendo sucesso mesmo ele tendo direito por lei a prioridade, ele não foi contemplado até hoje com a vaga", disse.

Amanda e Fabiano acreditam que Gael vai se desenvolver mais quando for para a creche — Foto: Patricia Lauris/g1 Tocantins

Quando Gael era mais novo, Amanda tinha a ajuda da mãe, que morava com ela no setor Santa Fé, na região Sul de Palmas. Mas a mãe se mudou e para que ela consiga trabalhar, às vezes, tem que rodar cerca de 34 km para deixar o filho com a avó. Esse trajeto é inviável de se fazer diariamente e constantemente ela tem que levar o menino para o trabalho ou deixá-lo com a filha de 12 anos por alguns momentos.

Ele faz alguns tratamentos por conta de seu diagnóstico, mas a mãe acredita que dentro de um Cmei ele conseguiria se desenvolver mais, por ter outros tipos de acompanhamentos profissionais.

“Mesmo ele tendo indicação de estimulação precoce, para aprender a aquisitar leitora, ser alfabetizado também precocemente, trabalhar a psicomotricidade dele. Tudo que precisa ser trabalhado dentro de um Cmei, dentro de uma escola, ele teria mais acesso a isso. Mesmo assim não consegui [a vaga] até hoje”, contou.

Em setembro deste ano, ela recebeu resposta do MPE e não conseguiu a vaga para Gael. Quando fez o cadastro através do sistema SIMPalmas, o nome mudou de posição diversas vezes. Já apareceu em primeiro lugar no quadro reserva e pouco tempo depois pulou para sexto, onde se encontrou até os primeiros 15 dias de outubro. Agora ela precisará novamente do auxílio da Defensoria para tentar fazer com que a fila ande para o menino.

Toda essa situação causa reflexos até no dia a dia da família, já que mesmo os filhos mais velhos, de 12 e 8 anos, precisam ajudar a mãe e o pai nessa luta diária.

“É muito difícil, estou vivendo uma situação de risco constante. Eles por vezes se queixam de ter que ficar com o irmão e isso me preocupa muito. Às vezes eu tenho que passar semanas sem ver meu pequeno para não colocar ele numa situação difícil, deixo com a minha mãe. Se deixo ele na segunda, só vou ver na sexta, porque não tenho recursos para estar me deslocado sempre que eu quero”, lamentou Amanda.

O casal ainda vai continuar na luta para encaixar o filho especial em uma das creches do município, mas Amanda confessa que tem medo de não conseguir no ano que vem.

“A gente tem que pedir a Deus, porque é muito complicado. Uma escola particular é quase R$ 1 mil e eu não tenho condições. Penso que o serviço público está aí para todos e infelizmente a demanda é maior que a oferta. Meu filho não é prioridade, de acordo com a Semed, mas na minha visão, isso está infringindo a Constituição. Como que fica para o ano que vem? Não sei”, comentou Amanda.

Para Fabiano, pai de Gael, também esse direito a educação infantil é de extrema necessidade para que a criança, principalmente as especiais, aprendam a ter autonomia desde pequenos e, consequentemente, não se tornem responsabilidade do poder público.

“Os pais, as mães e responsáveis não vão estar vivos para sempre. O que será dessas crianças, que amanhã vão ser adultos? Se eles não tiverem contexto para desenvolvimento das suas necessidades, como será isso para o Estado? Vai pagar, vai construir tantas instituições de acolhimento para esses adultos que não vão ter autonomia?” pontuou Fabiano.

Hoje Palmas têm 5.490 crianças matriculadas em 34 Cmeis, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação de Palmas (Semed). O número de crianças diminuiu nos últimos três anos, mas a queda é ainda imperceptível para as mais 4 mil crianças que ainda estão na fila. Veja no gráfico abaixo:

Vagas em Cmeis de Palmas
Fila diminuiu pouco nos últimos três anos
Fonte: Prefeitura de Palmas

Ação se arrasta há seis anos

Diante da situação enfrentada pelo casal Amanda e Fabiano e muitas famílias, o Ministério Público Estadual, em conjunto com a Defensoria Pública Estadual, acompanha a falta de oferta de vagas . Uma Ação Civil Pública que se arrasta desde 2016 na Justiça cobra da Prefeitura de Palmas políticas públicas e investimentos para atender a demanda da educação infantil para crianças até quatro anos.

Quando completou três anos de cobranças por parte do MPE, em setembro de 2019, ficou comprovada a omissão da Prefeitura de Palmas em resolver o problema da oferta de vagas em creches. Assim, transitou em julgado a condenação do Município.

Conforme a sentença, a gestão deveria apresentar em um prazo de 90 dias um cronograma para a construção de novos Cmeis, um relatório das obras em curso, prestar esclarecimentos sobre quais políticas estão sendo criadas sobre a educação infantil e outras determinações.

Mais três anos se passaram e sem ter respostas relacionadas à decisão judicial, o promotor Argemiro Ferreira dos Santos Neto requereu o cumprimento da sentença em maio do ano passado. O promotor ainda solicitou dados sobre o sistema de cadastro para inclusão de alunos na rede, o SimPalmas, e principalmente quantas crianças não foram atendidas pelo Município nos anos anteriores.

"Se existem alegação de ausência de orçamento para manter a universalização de creches e pré-escolas, que demonstrem possíveis renúncias fiscais, planejamento de gastos com servidores comissionados, show, etc!" destacou o promotor no requerimento.

No dia 10 de agosto deste ano, o juiz Adriano Gomes de Melo Oliveira, do Juizado Especial da Infância e Juventude de Palmas, deferiu o requerimento para cumprimento da sentença de 2019 e deu o prazo de 90 dias para que o Município preste os esclarecimentos. O magistrado considerou que não houve providências administrativas para atender a demanda da educação infantil, conforme apontou o MPE e ainda citou o alto número de crianças que aguardam por uma vaga.

O prazo para que a prefeitura preste os esclarecimentos é 21 de novembro. Caso não o faça, poderá pagar multa diária de R$ 3 mil com limite de R$ 300 mil.

No dia 19 de outubro, o promotor Benedicto de Oliveira Guedes Neto protocolou uma petição informando que se a prefeitura não se manifestar, poderá abrir processo para apurar possível crime de responsabilidade e desobediência praticado pela gestão. Até esta segunda-feira (7), a prefeitura não havia se manifestado.

Com a demora na oferta, pais tentam conseguir a vaga através da Justiça. A Defensoria Pública fez o atendimento a 37 pais em 2020, 44 em 2021 e 114 neste ano somente em Palmas. Nos dois anos de pandemia, a demanda diminuiu porque as creches estavam fechadas, segundo a DPE.

Mãe solo e problemas em dobro

A servidora pública Thaise Marques é uma das mães que procurou a Justiça para tentar a vaga. Ela tem que se desdobrar para conseguir trabalhar e arrumar um local para deixar a pequena Maitê, que completou um ano no início de outubro.

Ela passa pela mesmo dificuldade do casal Amanda e Fabiano. A diferença é que ela está sozinha nessa. Como mãe solo, também está na fila do SIMPalmas. Entrou na 39ª posição, em abril deste ano, quando Thaise começou a trabalhar.

"E ainda alguns servidores me disseram que a prefeitura não tem nenhuma obrigação de oferecer a vaga na creche. Que o ensino obrigatória é a partir de 4 anos e que não era possível fazer nada. Mesmo a Constituição afirmando que é sim obrigação do município oferecer vaga em creches. Ouvi muito que se não tiver alguém para indicar, não consegue a vaga", afirmou Thaise.

Thaise Marques é mãe solo e não conseguiu vaga em um dos Cmeis — Foto: Arquivo pessoal

Thaise está certa em dizer que o direito de ter educação infantil para a filha está na Constituição. Isso ainda foi reforçado no dia 22 de setembro deste ano, quando o Superior Tribunal Federal (STF) decidiu que é dever constitucional do Poder Público de assegurar o atendimento em creche e pré-escola às crianças de até 5 anos.

Mas enquanto a questão não se resolve aqui em Palmas, em atualização desta semana no sistema, o nome de Maitê passou para a 129ª posição da fila.

"No final de junho, a DPE entrou com processo judicial, solicitou a vaga por liminar e o juiz da vara da infância negou. O município então apresentou defesa alegando não ter a vaga, não ser obrigação do mesmo oferecer. Foi pedido para que a DPE comprovasse a necessidade da vaga. Chega a ser irônico ter que comprovar que preciso da vaga porque trabalho", reclamou a servidora.

Como saída, Thaise deixa a filha com uma babá e isso custa muito para seu orçamento. Mas, como ela mesma compartilhou, essa foi sua última opção.

A mãe faz uma outra reclamação: os nomes das crianças eram disponibilizados para que todos pudessem acompanhar a fila. Agora, a responsável só tem acesso ao nome de Maitê. Para ela, isso dá a entender que falta transparência na inclusão dos nomes na Rede Municipal.

Quanto mais cedo, mais desenvolvimento

A inserção de crianças até os quatro anos em creches faz toda a diferença para o desenvolvimento. É o que explica Bruna Rossetto, neuropsicopedagoga, especialista em análise do comportamento aplicado.

"Quanto mais cedo você coloca seu filho dentro desse contexto escolar, é melhor para o desenvolvimento cognitivo dele. Somos aquilo que vivenciamos", comentou.

A especialista também destacou que a interação com outras crianças é importante para essa evolução e preparação no momento em que frequentam centros de educação infantil. "Se a criança está mais cedo em uma creche, desenvolvendo com outras crianças, tendo contato com outras coisas a não ser ficar só dentro de casa ela vai ter um ganho cognitivo dentro da aprendizagem para futuramente".

Ela relembra a que mesmo a questão da matrícula ainda ser facultada até os quatro anos, o poder público deve abrir as vagas para crianças nessa faixa de idade, conforme a decisão do STF, e principalmente para crianças portadoras de algum transtorno ou síndromes, como é o caso de Gael.

"Para crianças com alguma deficiência cognitiva, Síndrome de Down, autismo, TDAH, e outros transtornos, é de extrema importância que eles tenham contato mais cedo ainda por meio da aprendizagem, porque vão ser muito mais estimulados", afirmou.

Por fim, Bruna desmistifica uma ideia geral sobre papel das creches na educação infantil. "As pessoas têm uma visão de que creche é só deixar a criança lá e que ela só vai dormir e se alimentar. Pelo contrário, hoje as creches são regidas por professores formados, ou seja, que estão ali para estimular o desenvolvimento das crianças. Então a creche é sim muito importante nesse início de fase das crianças. Então, sem dúvida nenhuma, quanto mais cedo você colocar sua criança em contato com esse meio da educação, estimulações com outras crianças, essa convivência, é importante demais para o desenvolvimento e crescimento cognitivo e motor também", disse.

O que diz a prefeitura

Em nota, a Semed deu explicações sobre a demanda estar tão alta e o que a gestão está fazendo para resolver a questão.

Sobre o andamento dos Cmeis na Arse 111 (1.104 Sul), na Arse 142 (1.406 Sul) e no setor Santo Amaro, disse que as obras já passam de 60% do andamento concluídos e que duas delas serão entregues ainda este ano e outra em 2023.

Com essas duas unidades, devem surgir 1.680 novas vagas, já que cada uma tem a capacidade de atender 560 crianças. A situação das filas terá uma melhoria, mas se no próximo ano a quantidade de inscritos continuar passando de quatro mil, cerca de 2,4 mil crianças ainda vão ficar sem vagas.

Prefeitura explicou que 60% das obras estão concluídas — Foto: Lia Mara/Secom Palmas

Sobre a flutuação nas posições, a pasta explicou que os cadastros serão classificados por unidade educacional, conforme a quantidade de vagas e que dependendo de alguns critérios, as crianças recebem pontuações.

As com mais pontos conseguem a vaga e entre os critérios estão a escolha da unidade mais perto da residência; se há irmãos matriculados no mesmo Cmei; se é criança portadora de deficiências ou transtornos de desenvolvimento; se os pais ou responsáveis tenham alguma deficiência ou doença crônica que impeça de cuidar da criança e se são contempladas com auxílios do governo federal.

Todos esses requisitos não garantem estabilidade de posição na fila e podem estar sujeitos a alterações, conforme novos cadastros vão surgindo com maiores critérios na pontuação, segundo a Semed.

O g1 pediu explicações à Semed com relação ao questionamento de Thaise sobre a mudança no SIMPalmas, que antes disponibilizava o nome de todos os cadastrados, mas a pasta não respondeu até a publicação desta reportagem.

Sobre a decisão do STF que obriga a oferta de vagas na educação infantil a todas as crianças até 5 anos, a gestão explicou que por ser recente, será necessário fazer um estudo financeiro por parte do município, "tendo em vista que Governo Federal ainda não se manifestou quanto ao aporte financeiro".

Para que a organização dessa demanda seja atendida, o Município informou que está se organizando junto à população por meio das audiências públicas do Orçamento Participativo. Por esse canal a população pode se posicionar sobre quais são as prioridades que precisam de atenção para destinação dos investimentos.

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