Brasil

Ciências Humanas voltam a sofrer pressão com diminuição de aulas

Secretaria de Educação de Porto Alegre propôs reduzir tempo de história e geografia
Prefeitura decidiu acabar com as aulas de filosofia e instituiu ensino religioso no lugar; professores afirmam que são contra a medida Foto: Giulian Serafim/PMPA
Prefeitura decidiu acabar com as aulas de filosofia e instituiu ensino religioso no lugar; professores afirmam que são contra a medida Foto: Giulian Serafim/PMPA

RIO — Criticadas pelo presidente Jair Bolsonaro, as ciências humanas voltaram a entrar na mira de gestores públicos. O caso mais recente ocorreu em Porto Alegre, onde a Secretaria de Educação propôs a redução dos tempos de história e geografia (mas depois voltou atrás), além do fim do ensino da filosofia, o que foi mantido na nova grade das escolas. Esse é mais um movimento de desvalorização da área, que já afeta os currículos do ensino médio e agora chega ao fundamental.

— Tirar isso da escola implica ter formação de estudantes com muito menos capacidade crítica para refletir, pensar e intervir na sociedade — afirma Fernando Cássio, professor de Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC, em SP.

A primeira vez que o Brasil viu a extinção do ensino de filosofia foi em 1972, durante a ditadura, quando ela foi substituída por conteúdos ideológicos como Moral e Cívica. A disciplina só voltou a ser liberada de forma optativa em 1986, com a redemocratização, e passou a ser obrigatória no ensino médio em 2008.

Mais recentemente, o movimento mais contundente de diminuição de carga horária das ciências humanas foi a reforma do ensino médio, decretada em 2016 por Michel Temer, que excluía sociologia e filosofia do ensino médio. Alterada, a versão final, apesar de não retirá-la completamente da escola, as rebaixou de disciplinas obrigatórias para “estudos e práticas”, conceito que, segundo o pesquisador Christian Lindberg, não foi definido até hoje.

— Ninguém sabe bem ainda o que é isso. Na prática, a reforma do ensino médio criou dois tipos de disciplinas: um de primeiro nível, português e matemática; e outro de segundo, que são todas as outras, diluídas em áreas do conhecimento — afirma Lindberg.

Professor da Universidade Federal de Sergipe, Lindberg pesquisa a entrada de componentes da filosofia nos currículos. Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que tem os componentes obrigatórios de 60% da grade horária de todos os alunos do país, ele avalia que houve uma redução dos conteúdos a serem tratados no ensino médio — excluindo, por exemplo, o ensino dos conceitos de estética e de lógica.

Já nos estados, que estão construindo seus currículos usando a BNCC como base e podem, por exemplo, ampliá-la, ele diz que há um cenário heterogêneo. Em alguns, veem-se cortes nos tempos de aula destinados a ciências humanas. No Paraná, por exemplo, filosofia e sociologia perderam uma hora de aula semanais, o que gerou enorme reação entre professores.

— Em alguns casos, está ocorrendo uma diluição do ensino de filosofia e em outros a retirada. No caso de Porto Alegre, a decisão, a meu ver, reflete o clima político da cidade — avalia Lindberg.

A capital gaúcha é hoje comandada por Sebastião Melo (MDB), prefeito alinhado ao presidente Jair Bolsonaro e que já defendeu a adoção do modelo cívico-militar nas escolas. O ensino de filosofia, apesar de não ser comum no ensino fundamental em outras capitais, é oferecido em Porto Alegre desde 1990.

A proposta inicial da prefeitura era o aumento de carga horária em português e matemática, a inclusão de ensino religioso na grade obrigatória das escolas (alunos poderiam optar por não fazer a disciplina), a diminuição dos tempos de história e geografia, e exclusão de filosofia.

Após um debate com as escolas, português, matemática, história e geografia mantiveram o número de aulas da antiga grade, e ensino religioso entrou no lugar de filosofia. Segundo a diretora de Comunicações do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), Cindi Regina Sandri, apesar da contribuição das escolas, a proposta da secretaria não caracteriza um consenso, já que a categoria rejeita o fim de filosofia.

— A secretaria determinou que a escola deve funcionar dessa maneira, mas a gente entende que dentro dessa organização está embutida a concepção pedagógica dela, de oferecer uma escola pobre aos pobres que são atendidos. A preocupação da gestão está em aumentar o índice do Ideb (avaliação nacional da educação) — afirma Sandri.

Pressão do Ideb

Segundo a Secretaria de Educação da cidade, as mudanças não são orientadas por uma ideologia conservadora. Na avaliação da pasta, “conservar seria manter como está, desconsiderando o fraco desempenho dos nossos alunos no Ideb, que é incompatível com os investimentos que historicamente foram feitos na área de Educação em Porto Alegre”.

No último Ideb (sigla de Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), de 2019, a rede municipal da capital gaúcha ficou com 4,9 (numa escala de 0 a 10) nos anos iniciais (do 1º ao 5º ano) e 3,7 nos finais (do 6º ao 9º) do ensino fundamental. O resultado em ambos os índices a coloca entre as piores capitais do país. Nesse mesmo período, suas metas eram de 5,6 e 5, respectivamente, e a média nacional para as redes municipais ficou em 5,7 e 4,5.

— As avaliações externas fazem com que o currículo das redes se modifique. Se elas só avaliam português e matemática, o objetivo dos gestores às vezes é conseguir boas notas nesses exames, e não garantir o direito à educação. Nessa lógica distorcida, não tem porque oferecer disciplinas, como as ciências humanas, que não serão mensuradas — diz a pesquisadora Fernanda Moura, que faz parte da Frente Nacional Escola Sem Mordaça.

Doutor em Educação no Rio Grande do Sul, Gregório Grisa aponta que, mesmo assim, a reformulação da carga horária da cidade não necessariamente garantirá um Ideb melhor. Segundo ele, medidas como a ampliação do ensino integral — alunos que ficam mais de 7 horas na escola — e a universalização da pré-escola na rede são caminhos melhores para esse objetivo.

— Atualmente, só 10% das matrículas são de tempo integral e 65% das crianças estão na pré-escola, quando isso já deveria ser de 100% — afirma.

Grisa explica ainda que a rede municipal de Porto Alegre consegue índices razoáveis de proficiência na Prova Brasil, mas sofre com taxas de evasão. As duas variáveis, combinadas, compõem o Ideb.

— A rede municipal atende a camada mais pobre. É muito desafiador do ponto de vista da evasão, que, quando aumenta, derruba a nota do Ideb — diz.

A Secretaria de Educação de Porto Alegre informa que a proposta prevê o estudo de filosofia de forma transversal, como “ferramenta interdisciplinar de planejamento da vida do aluno, desde as primeiras séries”. A secretaria acrescentou que a disciplina de ensino religioso é uma determinação da BNCC, o que é contestado por especialistas.

— Fica a cargo das redes definir como será essa oferta. Não precisa ser uma disciplina— diz Lindberg.