Há sete anos tive um câncer. Operei o tumor e tive de passar por um tratamento severo de radioterapia e quimioterapia. Hoje estou, digamos, curada, embora se saiba que esta doença maligna é como um vício. A recuperação nunca é total. Há sequelas maiores ou menores. O tumor foi debelado, mas a radioterapia gerou  graves problemas no intestino. Para solucioná-los, implantei um neuromodulador no sacro para restabelecer a conexão das terminações nervosas que ligam os movimentos peristálticos ao cérebro.

Há um mês atrás levei outro susto e tive de colocar um stent em uma das coronárias. A doença coronariana tem, no meu caso, um alto grau de fator genético. Mas a ginástica e sobretudo os remédios, as famosas estatinas, me salvaram de um enfarto. Não houve dano no coração, ele bate firme como sempre e o sangue corre agora mais livre depois do “procedimento”.

Tenho 72 anos e é normal para uma pessoa desta idade estar sujeita a doenças. Porém, sobrevivi aos dois eventos graves graças ao avanço da ciência. Sem o desenvolvimento científico dos últimos setenta anos, provavelmente não veria meu filho crescer e menos ainda meu neto. Agradeço todos os dias aos que se dedicam com consciência e sentido de missão à pesquisa científica. Aos que fizeram avanços na medicina nuclear e aos brasileiros que participaram de várias descobertas que permitiram os novos tratamentos para as doenças coronarianas como o stent farmacológico.

Porém, o momento é alarmante. Estamos hoje passando por grave crise política e econômica e a verba para a ciência teve um corte de 44% este ano. Cientistas estão  migrando para países que oferecem melhores condições de pesquisa visto que aqui, a cada dia, elas se deterioram.

Faço parte de uma família de fundadores da ciência e vi, em casa, o esforço de gerações para criar instituições para o progresso científico. Assisti de perto e desde muito cedo ao que muitos hoje consideram algo natural. Não foi natural e só foi possível porque houve grupos de cientistas que se uniram, mesmo em meio a diferenças e conflitos, para construir um projeto de nação baseado no desenvolvimento da pesquisa e da educação.

Joaquim da Costa Ribeiro, físico experimental, foi um desses pioneiros  e articuladores da criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) em 1949. Na mesa do jantar, contava com humor e em tom de segredo os obstáculos engendrados pelas instituições universitárias para impedir a criação de um instituto dedicado apenas à física.  Havia divergências entre os cientistas sobre a questão. Um dia, reunidos para discutir o tema, meu pai usou uma estratégia diplomática. Disse:“ Vamos imaginar um estatuto fictício, uma espécie de hipótese para o caso de conseguirmos os apoios necessários.” Todos concordaram e fizeram o esboço do estatuto. Depois de conseguirem o apoio de cientistas, políticos e empresários ao esboço de estatuto “fictício”, reuniram-se novamente e o CBPF foi criado em 1949. O estatuto hipotético virou realidade. Os que já visitaram este extraordinário instituto puderam encontrar no seu corredor principal a lista dos que contribuíram para a sua criação.

Foi também a geração dos físicos, a qual meu pai pertenceu, que criou, dois anos depois, o Conselho Nacional de Pesquisas e, em seguida, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a divisão de Energia Nuclear do CNPq, transformada um pouco mais tarde em Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen).  Foi esta mesma geração que liderou a luta pelo uso pacífico da energia nuclear na ONU e participou da fundação da Agencia Internacional de Energia Atômica, em Viena.

Portanto, foi um grupo de cientistas dedicados que impulsionou o desenvolvimento da pesquisa. Naquele tempo, não havia dedicação exclusiva ao trabalho científico como hoje. Sou testemunha de épocas em que o salário atrasava e do esforço do meu pai para fazer ciência e dar aulas no ensino médio para poder sustentar seus nove filhos. Só mais tarde conseguiu-se implantar o regime de dedicação exclusiva com o esforço deste mesmo grupo.

As gerações que se seguiram lutaram também para a estabilidade do sistema de financiamento e apoio à pesquisa construído a duras penas. As ciências humanas seguiram os passos dos fundadores das ciências ditas exatas e depois de alguns anos conseguiram fortalecer seus institutos próprios e centros de excelência nas universidades.

Há algumas semanas, assistindo à comunicação do físico Ronald Cintra Shellard, diretor do CBPF em palestra na Câmara dos Deputados, me veio uma espécie de dor. Uma tristeza enorme de ver que no ano em que se completam setenta anos da extraordinária descoberta do Méson pi pelo grande físico e também um dos fundadores, Cesar Lattes, podemos estar diante de um grande retrocesso  e do fim desta instituição. Como será nosso destino sem as invenções e descobertas que possibilitam a cura do câncer e permitem viver mais combatendo as placas das artérias?

O que seria do futuro sem a grande descoberta do fenômeno da repetência escolar nos anos 1940 feita por outro fundador, o estatístico Teixeira de Freitas, que participou da criação do IBGE, descoberta que só foi conhecida amplamente nos anos 1990 por meio de uma luta de pesquisadores que conseguiram mudar as políticas públicas na esfera da educação básica? Até hoje é difícil fazer com que o sistema educacional incorpore esse grande achado. Milhares de crianças e jovens ainda se perdem na marginalidade devido à “pedagogia da repetência”, expressão cunhada pelo físico Sergio Costa Ribeiro. Sabemos hoje que a repetência é ainda um fator primordial a ser combatido para que todos os jovens possam ter melhores oportunidades.

Enquanto os políticos trocam ideias por emendas parlamentares desavergonhadamente e mudam de lado como se muda de roupa em troca de cargos, e que bilhões de dólares foram surrupiados num conluio escandaloso entre parte da classe política e empresários, nossas instituições científicas estão sob o risco de desaparecerem. Fico imaginando o que diriam os fundadores da ciência diante de tamanha ânsia de nossos políticos e empresários atuais pelo vil metal.

(Foto: Divulgação/Lafepe)

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