NOTÍCIA

Edição 302

Cidadania digital na escola para combater a desinformação

Iniciativas pedagógicas investem em cidadania digital para formar jovens críticos, conscientes e socialmente responsáveis

Publicado em 05/04/2024

por Alex Bessas

cidadania digital ensino A educação em cidadania digital é uma ferramental vital para o desenvolvimento de jovens críticos e conscientes (Foto: Schutterstock)

Não são poucos os desafios que o advento e popularização da internet, primeiro, e das redes sociais e inteligência artificial (IA), depois, trouxeram, ampliaram ou até modificaram. Questões que vão se apresentando no correr do tempo e, pouco a pouco, conhecidas, são nomeadas, avaliadas e, finalmente, enfrentadas. Caso, por exemplo, da infodemia, fenômeno reconhecido e declarado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, caracterizado pelo excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando necessário; ou do cyberbullying, que, diferente do bullying, mais circunscrito ao ambiente escolar, ultrapassa fronteiras físicas, tornando difícil para a vítima escapar de ataques virtuais, que envolvem intimidação, humilhação e perseguição. 

É neste cenário que a educação em cidadania digital emerge como uma ferramenta vital para o desenvolvimento de jovens críticos e conscientes, capazes de fazer uso das novas tecnologias a partir de critérios como consciência, responsabilidade, ética e segurança. O assunto, inclusive, já foi tratado pelo ministro da Educação, Camilo Santana. Em uma entrevista à plataforma governamental Canal Gov, ele reconheceu que a inclusão da cidadania digital no currículo escolar, mesmo como disciplina optativa, pode ser importante para o combate à violência e a promoção de um ambiente de aprendizagem seguro e respeitoso. 

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Oficialmente, porém, o conceito não é citado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Mas, a cultura digital é. A BNCC, aliás, reconhece a importância da tecnologia na formação dos alunos, propondo a abordagem em sala de aula de aspectos como o entendimento do mundo digital e o uso ético das novas tecnologias. Uma compreensão que abre caminho para a cidadania digital ser incluída nos planos de ensino, como já fazem escolas como a Lourenço Castanho, em São Paulo, que, sob a direção pedagógica de Fabia Antunes, aplica noções e debates sobre a necessidade de se ter uma postura cidadã também no mundo online. 

“No nosso currículo de letramento digital, as crianças, desde o primeiro ano, têm contato com a cidadania digital, aprendendo que, a partir do momento que fazemos login e entramos no ambiente virtual, somos identificados, somos alguém e, portanto, somos sujeitos que têm direitos, deveres e responsabilidades”, detalha Fabia. “Este é um importante passo quando falamos de crianças que pensam que este é um ambiente onde ninguém vê o que está acontecendo”, frisa. 

Fabia pontua que, na instituição, o letramento digital é trabalhado transversalmente, sendo tratado em diferentes disciplinas e fases de aprendizagem. “Hoje, não existe uma aula de informática, porque essa é uma competência que perpassa todas as outras e precisa ser abordada de maneira distinta com cada faixa etária”, estabelece. Ela cita que, no eixo da cidadania digital, são trabalhadas temáticas como identificação digital, segurança online, ética na internet e nas redes sociais e privacidade. “Tudo isso é ensinado continuamente até o ensino médio, onde alunos participam de debates mais complexos”, salienta, lembrando de aulas em que os estudantes dos anos finais trouxeram à tona a discussão dos direitos autorais, questionando quem referencia uma imagem criada por uma IA”. 

Família 

Apesar dos esforços pedagógicos para que a educação midiática seja efetiva, Fabia Antunes admite que as famílias também precisam se engajar. “No ano passado, um grupo de pais nos procurou e fizemos uma série de ações de formação com eles. Esse tipo de iniciativa é crucial, pois a escola não pode fazer tudo sozinha. Afinal, não somos nós que compramos, para as crianças, celulares — que não estão na nossa lista de material didático”, assevera ela, que reconhece que esses debates nem sempre se dão de uma maneira previsível e sistematizada. 

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“A gente fala de cidadania e letramento digitais na teoria e prática educacional, mas, às vezes, também precisamos voltar a essas questões na prática cotidiana, como quando há brigas entre crianças ou adolescentes no WhatsApp, por exemplo”, cita. “Como essas coisas acabam respingando na escola, nos vemos no papel de voltar a falar de princípios de respeito e de regras de convivência, mostrando que, na interação online, precisamos respeitar nosso interlocutor da mesma forma como faríamos se estivéssemos frente a frente”, reforça.  

Chave-mestra 

Essa compreensão ampliada da cidadania, como uma chave-mestra que norteia tanto a experiência online quanto a offline, é defendida também por Patricia Blanco, presidente executiva do Instituto Palavra Aberta, entidade sem fins lucrativos que atua, desde 2010, na defesa da liberdade de expressão e de imprensa, em prol do direito à informação e pela disseminação do conceito da educação midiática. “Eu tenho uma questão em relação a essa ideia de uma cidadania para o digital, porque acho que hoje a cidadania do mundo offline tem que valer também para o mundo digital. Afinal, vivemos em um mundo que não tem mais uma separação muito clara do online e do offline — tanto que já temos, inclusive, uma expressão, o ‘phygital’, para designar essa constante experiência híbrida entre o físico e o digital”, reflete. 

Em 2019, a instituição liderada por Patricia lançou o EducaMídia, programa que visa disseminar e unificar o conceito de educação midiática e formar professores e educadores por meio de cursos online gratuitos, que trabalham o conceito de cidadania a partir do desenvolvimento da educação midiática informacional. “Defendemos que ela pode ser, evidentemente, uma disciplina específica ou até como uma eletiva que vai explicar o ambiente informacional, o eixo da leitura crítica, da produção de conteúdo, do fortalecimento da autoexpressão e da participação cidadã. Mas o ideal é que ela seja trabalhada transversalmente”, opina, celebrando que 12 mil pessoas já passaram pela formação. 

 

cidadania digital - Fabia Nunes

A abordagem está presente na Escola Lourenço Castanho, SP. São trabalhadas temáticas como identificação digital, segurança online, ética na internet e nas redes sociais e privacidade, conta a diretora pedagógica Fabia Antunes (Foto: Divulgação)

Aplicação 

“Se a gente avaliar, por exemplo, o que tem na BNCC, das 10 competências básicas, a gente consegue encontrar espaços para tratar de cidadania, cultura digital e educação midiática em pelo menos cinco, sendo algo que podemos desenvolver como uma camada para interpretação do ambiente cada vez mais digital que a gente vive”, aponta Patricia Blanco, trazendo, em seguida, uma série de exemplos práticos.  

No conteúdo de língua portuguesa, ela sugere que o tema pode ser trabalhado na identificação de gêneros textuais, na interpretação de textos e até no campo jornalístico-midiático, com a verificação de conteúdo. “Em ciências, podemos trazer questionamentos sobre desinformação na área de mudanças climáticas ou ensinar o estudante a verificar fontes de estudos científicos”, prossegue. “Na matemática, a questão pode aparecer no enunciado de um problema ou ao tratar uma estatística — temos, inclusive, um plano de aula, o Números Podem Mentir, para mostrar como dados matemáticos podem ser distorcidos a partir de leituras enviesadas”, acrescenta.  

Patricia Blanco

A cidadania do mundo offline tem que valer também para o mundo digital, estimula Patricia Blanco, presidente executiva do Instituto Palavra Aberta (Foto: Michell Santana)

Os efeitos desse esforço, destaca Patricia, são muito positivos. “Tem um caso que sempre gosto de citar, voltado à Educação de Jovens e Adultos, o EJA, na região de Sobradinho, em Brasília, onde essa camada da educação midiática foi aplicado por uma professora que, ao fazer isso, viu seus alunos se darem conta que a democracia também é para eles, que eles podem votar e escolher seus representantes”, relata, reforçando que a cidadania digital não é só sobre o uso seguro da internet, mas também sobre como formar indivíduos capazes de contribuir para uma sociedade mais informada, inclusiva e democrática. 

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Autor

Alex Bessas


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