Livros
PUBLICIDADE

Por Renata Izaal


Há mais de 30 anos, a psicóloga e pesquisadora Cida Bento estuda o discurso da meritocracia e o porquê de pessoas negras serem preteridas no mercado de trabalho, mesmo que tenham currículos equivalentes ou até melhores do que outros candidatos a uma vaga. Cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, ela diagnosticou um modelo de manutenção de privilégios, ao qual deu o nome de "pacto narcísico da branquitude", tema de sua tese de doutorado. Esse acordo tácito, que está presente em toda a engrenagem da sociedade brasileira como herança do passado colonial e escravocrata, é apresentado por Bento em “O pacto da branquitude”, recém-lançado pela Companhia das Letras.

Em entrevista ao GLOBO por vídeo, ela afirma que a discussão sobre racismo e privilégios tem que ser explícita: “Isso educa.”

O que é o pacto narcísico da branquitude?

É um acordo não nomeado de permanência de um segmento em lugares de privilégio e de um outro segmento em lugares subalternizados. A questão é que por causa do pacto pessoas brancas não precisam ir às ruas para chegar às posições de liderança, e isso vale dos sindicatos às grandes empresas. O pacto é feito com base numa herança não reconhecida e tem desdobramentos objetivos e subjetivos, concretos e simbólicos.

Quando esse tema é abordado, muitos brancos dizem coisas como “não sou racista, "tenho amigos negros” ou reagem com violência. É uma negação?

A branquitude é uma resposta aos movimentos de negros e indígenas. Isso fala da desigualdade. Não é à toa que temos hoje o maior número de jovens negros mortos em 30 anos. Mata-se um negro para queimar arquivo, porque a morte dele lava essa herança da qual falei. Quando, por exemplo, uma mulher branca atravessa a rua com medo de um homem negro, uma parte dela sabe metaforicamente que tem na bolsa algo que não é dela, que está manchado de sangue.

Quando falamos das heranças da escravidão, falamos dos seus impactos nas vidas dos negros, mas nunca nas vidas dos brancos. Por quê?

Porque a herança branca é invisibilizada. Os brancos não se veem como herdeiros e beneficiários dessa história. Temos um escravizado que a carrega e um escravizador que sumiu. Os jovens aprendem a História do país assim e, mais tarde, a transmitem silenciando sobre a parte anti-humanitária. É importante dizer que essa herança branca é transmitida na forma da ideia de meritocracia.

É possível haver meritocracia em um país racista?

Não existe meritocracia num país racista. Mas foi preciso inventar uma teoria que justificasse a manutenção do pacto e dessas heranças. Quem lucrava com a mineração em Minas Gerais e quem hoje dirige as mineradoras? Não há empresa onde se discuta ação afirmativa em que eu não escute coisas como “não vamos passar a mão na cabeça de ninguém”. Nunca passaram.

Ao menos no mercado de trabalho parece haver mudança.

Sim, está acontecendo, e é um aprendizado social. Quem contrata começa a entender que está em uma bolha branca. As empresas não mais se sentem confortáveis com reuniões onde há apenas homens brancos, e esse desconforto se espalha socialmente. Mas é um desdobramento que precisa chegar a Câmara e ao Senado. Se somos um país majoritariamente negro e feminino, o que há de errado lá?

A vitória de Jair Bolsonaro em 2018 foi uma resposta aos movimentos de negros, indígenas e mulheres?

Foi também. A ampliação dessas vozes mobilizou conservadores e liberais. No coração de tudo está o fato de que eles querem o território livre para si. Em 2018, o gestor público já não estava tranquilo para fazer o que quisesse. Agora ainda mais: vai ser preciso muita mentira para investir nesse projeto.

E uma eventual derrota em outubro pode significar que o eleitorado aprendeu alguma coisa sobre a questão racial?

Isso pode pesar na decisão porque as pessoas têm sofrido. E, por uma ação forte dos movimentos sociais, a sociedade debate mais do que antes esses temas. Houve uma ampliação da consciência e do posicionamento público. Há 10 anos, pessoas brancas não iam às ruas nas manifestações antirracistas. Hoje vão.

A senhora não gosta do termo “política identitária”. Por quê?

Brigo com o conceito de “identitário” porque segundo ele o branco não tem cor; é transparente e universal. Identitários são os outros, não é? Esse é um lugar que precisa ser quebrado. Falta estudar, mas o debate já está acontecendo.

Vivemos uma transformação?

Vai ter mudança, mas não sem pressão. Depende de meninos e meninas aprenderem desde crianças, de a legislação ser implementada e também de entender como tudo isso aparece para os brancos. O sentimento de “batalhei, mas os lugares não estão mais garantidos”.

O Brasil precisa de uma discussão aberta e coletiva como a feita na África do Sul pós-Apartheid?

Sim. Mandela entendeu que a sociedade precisava refletir sobre a vivência coletiva daquela violência. Acho que estamos nesse processo, e essa discussão explícita ajuda. Isso educa.

O sucesso de autores negros como Itamar Vieira Júnior e Eliana Alves Cruz pode criar novos imaginários na sociedade brasileira?

Meu filho, Daniel Teixeira, me trouxe uma fala de Lázaro Ramos, que é “se ver como possível”. Esses lugares simbólicos nos ajudam a achar que podemos, que aquele é o nosso lugar. Ajudam uma criança negra a se ver.

Em quem a senhora se via na infância?

Eu nasci num contexto negativo. Mas minha mãe me deu um mandato dizendo que eu não teria uma vida como a dela. Foi simbólico mas me fez entender que eu preciso falar, atuar.

“O pacto da branquitude”.

Autora: Cida Bento. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 152. Preço: R$ 39,90.

Mais recente Próxima
Mais do Globo

Espaço começou a ser erguido em 2010

Ao que parece, o Museu da Imagem e do Som não ficará pronto tão cedo

Semyon Eremin e sua equipe retornavam de uma reportagem na vila de Pryiutne

Jornal russo anuncia morte de correspondente após ataque com drone na Ucrânia

Com esporte e atrações musicais, Aloha Spirit Festival promete movimentar a economia da cidade durante o mês de maio e levar opções de entretenimento ao público

Capital do surfe no Brasil, Saquarema receberá um dos principais eventos de esportes aquáticos do mundo

Subida nos preços foi puxada pelo arroz e pelo feijão-preto

Tradicional feijoada de São Jorge vai ficar quase 20% mais cara este ano

Dados são relativos ao período entre 2022 e 2023

Classe média brasileira ganhou mais de 'uma Portugal' de gente, aponta economista

Max Azzarello, de 37 anos, estava em uma área isolada para apoiadores do republicano quando se encharcou com um líquido e deu início às chamas

Homem morre após atear fogo em si mesmo do lado de fora do tribunal de julgamento de Trump