Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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Descrição de chapéu Fies enem

Fies, fato ou fake?

Diagnóstico impreciso não pode nos fazer esquecer os equívocos do programa

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É bastante infeliz (e preconceituoso) associar o baixo custo-efetividade do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) às características da população —em geral, baixa renda— que utiliza esse financiamento para ter acesso ao ensino superior em instituições privadas.

Afinal, deve mesmo ser papel do governo atuar no crédito estudantil para corrigir falhas de mercado quando os benefícios —privados, via retornos salariais, e públicos, via externalidades para a sociedade— são claros.

Além disso, são muitos os exemplos de políticas de crédito educacional bem desenhadas que conseguiram melhorar a empregabilidade dos alunos, elevar a produtividade do trabalho e diminuir desigualdades. Mas uma crítica sem fundamentos ao Fies não pode nos distanciar dos reais problemas que esse programa específico apresentou ao longo de seus 20 anos de existência.

Pois criticar o programa de forma claramente equivocada dá margem para que se acredite que ele foi bem-sucedido, quando, na verdade, há poucos indícios de que as metas e objetivos para os quais se propôs tenham sido alcançadas.

Pelo diagnóstico que justifica o Fies, uma das principais causas do baixo acesso da população pobre ao ensino superior é a restrição ao crédito, já que: 1) a provisão privada é majoritária; 2) a taxa de matrícula no ensino superior é baixa, principalmente entre os mais pobres; e 3) os retornos ao diploma universitário são expressivos.

Haveria, portanto, bastante espaço para expandir o acesso via provisão privada, em um investimento com alta taxa de retorno.

Desde a criação do Fies, a taxa de matrícula no ensino superior tem aumentado, mas hoje o percentual de matrículas totais (considerando todas as idades) como percentual da população de jovens de entre 18 e 24 anos é de 44% (comparado a 33% em 2012), muito abaixo das taxas de países como EUA e Coreia do Sul (em torno de 90%) e também abaixo da meta de 50% do Plano Nacional de Educação.

Teria sido o Fies responsável pelo aumento das taxas de matrículas? Quando se olha para o período de maior expansão do programa, entre 2009 e 2015, no qual o número de alunos matriculados na modalidade presencial com financiamento do Fies passou de 0,2 milhão para 1,9 milhão, o total de matrículas presenciais em instituições privadas cresceu em só 1 milhão (de 3,8 milhões para 4,8 milhões).

Isso indica que parte da expansão do Fies se aplicou a alunos que já estavam cursando o ensino superior e usaram o financiamento em substituição a fontes de crédito alternativas. Também vale lembrar que grande parte do aumento de matrículas nesse período veio da ampliação da rede pública, com aumento de 35% das matrículas nesse segmento (1,4 milhão para 1,8 milhão).

Menos óbvio ainda é assumir que os expressivos retornos ao diploma universitário se estenderiam aos beneficiários do Fies, já que o retorno ao diploma é função do aprendizado obtido e depende diretamente da qualidade dos cursos ofertados pelas instituições privadas.

Há muitos indícios de que a expansão da oferta de vaga não foi acompanhada por processos de governança que garantissem boas práticas das próprias instituições de ensino.

Auditoria do CGU relativa ao exercício de 2016, por exemplo, evidenciou que 2.922 dos 20.606 cursos ofertados tinham valores de mensalidade maiores nos contratos firmados pelos estudantes ingressantes pelo Fies. A diferença de preços alcançou 23% e implicou um sobrepreço de R$ 73 milhões somente para alunos ingressantes em 2016 e no primeiro ano de curso.

Não surpreende que muitos dos financiamentos não se tenham pagado. Considerando a situação dos contratos de 2010 a 2017 em fase de amortização (pouco mais de 1 milhão), 41% do saldo devedor encontrava-se inadimplente por mais de 90 dias R$ 10,8 bilhões), e 29,3%, por mais de 360 dias (R$ 7,6 bilhões), em janeiro de 2019.

Entre os beneficiários inadimplentes, 56,9% tinham emprego com carteira assinada em 2018, mas 31,5% recebiam o abono salarial, indicando baixo grau de autossuficiência econômica para eles. A média salarial foi de R$ 2.356, próxima da da economia no mesmo ano, porém longe do salário de um trabalhador com diploma universitário, que recebe R$ 5.000, de acordo com a PNAD-C.

Todas essas considerações somam-se a um custo fiscal enorme do programa, relatado detalhadamente em relatório de 2017 do próprio Ministério da Fazenda. É fundamental que esse processo de financiamento público se transforme, de forma eficiente, em melhores oportunidades para seus beneficiários, e isso só será alcançado com controle de qualidade dos provedores de serviço e exaustiva análise de custo-benefício.

Muitos avanços vêm ocorrendo nas sucessivas reformulações do Fies, mas é evidente que o programa ainda precisa de mais aperfeiçoamento, avaliação e escrutínio. Um diagnóstico impreciso e uma fala inoportuna não podem nos fazer esquecer os muitos equívocos desse programa de financiamento estudantil.

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