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Capacitismo está na linguagem e em 'histórias de superação'

Como racismo ou misoginia, a discriminação de pessoas com deficiência fica mais evidente quando é nomeada

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Philippe Scerb
São Paulo

Quantas vezes você já disse que alguém "deu uma de João sem braço", ou "deve estar cego’’? Expressões desse tipo reproduzem a discriminação contra pessoas que não têm de fato um membro ou o sentido da visão. Sem perceber, quem usa essas metáforas está sendo "capacitista".

Pouco conhecido, o termo "capacitismo’’ é usado para descrever comportamentos que reforçam o preconceito. Adaptado do inglês "ableism", aponta essa ideia preconcebida de que quem tem deficiência física ou intelectual é incapaz de realizar certas tarefas.

Ilustração em tom azulado retrata pessoas com deficiência em um espaço cultural; uma mulher com vestido vermelho está de pé, ela tem uma perna mecânica; ao lado, há uma pessoa cadeirante e, mais atrás, outra usando muletas; eles estão observando pessoas que fazem pinturas em telas apoiadas em cavaletes
Catarina Pignato

A discriminação sempre existiu, mas nomeá-la ajuda a identificar o problema e a combatê-la, diz Marta Gil, consultora de inclusão e coordenadora do Instituto Amankay. "Enquanto não existe um termo exato, o preconceito é muito abstrato. Temos que tratar das nossas práticas preconceituosas e, para falar sobre isso, precisamos nomear".

Assim como o racismo e a misoginia, o capacitismo faz referência a um comportamento enraizado na cultura e cujas manifestações são naturalizadas e até inconscientes.

Mas esse preconceito carrega uma particularidade um tanto paradoxal em relação a outros. Por um lado, o capacitismo subestima seres humanos ao supor que eles não conseguem fazer determinadas coisas. Sua essência é reduzir a pessoa à sua deficiência, às suas limitações físicas ou intelectuais.

"É como se estivessem colocando lupa no que não podemos fazer, enquanto no caso de pessoas sem deficiência, o destaque recai sobre as habilidades", diz Vitória Bernardes, psicóloga e representante da AME (Amigos Múltiplos pela Esclerose) no Conselho Nacional de Saúde, que é cadeirante.

Por outro lado, o capacitismo se expressa na exaltação de realizações corriqueiras, superestimadas só porque a pessoa tem alguma deficiência. Basta pensar nas narrativas piegas de superação, no registro exagerado de trajetórias de vida que deveriam ser consideradas normais.

Tabata Contri, consultora de inclusão no mercado de trabalho, reconhece que quem elogia não tem noção de que está sendo preconceituosa.

"Se a pessoa com deficiência é maravilhosa apenas por viver a vida, trabalhar, casar, dirigir, é porque a sociedade não esperava que ela fizesse nada disso. Quando a exaltamos por práticas do cotidiano é porque a régua está lá embaixo. Isso é capacitismo."

É comum ainda que, a partir da intensão de proteger essas pessoas, acabe-se reforçando a posição do "coitado ou do inferior", nas palavras de Gil. Para ela, as próprias mães de crianças com limitações, ao evitar que os filhos saiam ou trabalhem, contribuem para a criação de uma bolha excludente. "Isso rebate na autoestima da pessoa, ela compra a ideia de que é incapaz".

Contri conta que, ao sofrer o acidente que a tornou cadeirante, pensou que não poderia mais trabalhar como antes, em uma loja de roupas. "Eu nunca tinha visto uma cadeirante trabalhando em shopping, achava impossível. Eu também era capacitista."

Visibilidade é crucial para que pessoas com deficiência superem as barreiras culturais que as segregam. "O simples gesto de sair para a rua, no caso do cadeirante, é um discurso. Não precisa falar nada, basta que as pessoas vejam que ele existe e que pode estar ali".

Nesse sentido, a difusão de pessoas com deficiência nas redes sociais, compartilhando suas visões de mundo e vidas, é fundamental. A mensagem anticapacitista está reverberando, diz Contri. "Antes, não se viam essas pessoas, no máximo quem falava eram seus pais. Agora elas estão assumindo o protagonismo."

A representatividade, porém, depende de medidas de promoção da inclusão. Segundo Karla Garcia, do Núcleo de Estudos sobre Deficiência da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), não adianta mudar a forma de falar e permitir retrocessos, como a flexibilização da lei de cotas (que há 30 anos garante vagas para pessoas com deficiência), aventada pelo governo.

Tampouco esperar que o estigma acerca de um filho deficiente mude sem que se crie "uma política pública do cuidado, que permita que a mãe não abandone a profissão para cuidar da criança".

Bernardes alerta para o risco da volta das escolas especiais. Não há caminho para a desconstrução do capacitismo que não passe pelo convívio. "A pessoas têm que se relacionar com indivíduos com deficiência, de humano para humano. Mais do que falar sobre, cada um deveria se perguntar quando conviveu com alguém com essa condição, e buscar o contato sem resumir o outro à deficiência em si".

Evolução da legislação brasileira sobre acessibilidade 

1961 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 
- A educação de "excepcionais" (o termo era usado para pessoas com deficiência) deve ser enquadrada no sistema geral de ensino, na medida do possível

1971 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
- Substitui a lei anterior;
- Garante o acesso a tratamento especial, mas não especifica se deve ser feito no ensino regular

1978 - Emenda Constitucional nº 12
- Garante educação especial e gratuita, assistência e reabilitação e acesso a lugares públicos;
- Proíbe a discriminação

1988 - Nova Constituição
- Proíbe discriminação quanto a salários e critérios de admissão em empregos;
- Espaços e transportes públicos devem ser adaptados para acesso de PCDs;
- Determina atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular

1989 - Lei Federal nº 7.853
- Garante a integração de pessoas com deficiência nas áreas de educação, saúde, formação profissional, recursos humanos e edificações;
- Estabelece a obrigatoriedade e gratuidade da oferta de educação especial no ensino público e o acesso a materiais, merenda e bolsas de estudo (lei regulamentada pelo decreto 3.298, de 1999)

1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente
- Garante o atendimento especializado a alunos com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino

1991 - Lei de Cotas
- Determina que empresas com mais de 100 empregados destinem de 2% a 5% das vagas a pessoas com deficiência

1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
- A educação especial deve ser preferencialmente oferecida pela rede regular de ensino;
- Os sistemas de ensino devem oferecer currículo, métodos, técnicas e recursos para garantir a integração dos alunos com deficiência, além de especialização adequada aos professores

1999 - Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência
- O Conade (hoje integra o Ministério dos Direitos Humanos) é criado para acompanhar e avaliar políticas públicas de inclusão de PCDs

2000 - Leis nº 10.048 e nº 10.098
- Estabelecem reserva de assentos em transportes coletivos, normas de construção de edifícios e planejamento de espaços urbanos mais acessíveis

2001 - Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica
- Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, sendo a escola responsável pelo atendimento especializado;
- Escolas regulares podem criar classes especiais para alunos que apresentem alto grau de dificuldade na aprendizagem, mas sendo possível inseri-los nas classes comuns novamente

2002 - Lei nº 10.436
Reconhece a Língua Brasileira de Sinais como meio legal de comunicação e expressão

2006 - Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
- Incentiva a disseminação de informações para a sensibilização da sociedade, visando a garantia de acessibilidade para pessoas com deficiência

2007 - Plano de Desenvolvimento da Educação
- Cria salas multifuncionais e programas que contemplam a formação de professores e o acompanhamento de alunos com deficiência

Plano de Meta Compromisso Todos pela Educação
- Decreto garante o acesso de alunos com deficiência nas classes comuns do ensino regular

2008 - Decreto nº 6.571
- O atendimento educacional especializado deve estar integrado à proposta pedagógica da escola e envolver a participação da família
- O Ministério da Educação fica obrigado a prestar apoio financeiro e técnico para a criação de salas multifuncionais, capacitação de professores e gestores e adequação arquitetônica das escolas
- (revogado pelo Decreto 7.611, de 2011)

2009 - Decreto nº 6.949
- Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento assinado em 2007;
- Proíbe qualquer tipo de discriminação baseada na deficiência;
- Garante educação gratuita e de qualidade para PCDs

2011
Decreto nº 7.480

- Extingue a Secretaria de Educação Especial (Seesp) e cria a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), que passa a cuidar da educação especial até 2019

Decreto nº 7.611
-
Garante um sistema educacional inclusivo em todos os níveis de ensino;
- Estado tem o dever de oferecer medidas de apoio individualizadas e efetivas para alunos com deficiência

2012 - Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764)
- Considera indivíduos com transtorno do espectro autista como pessoas com deficiência e garante a eles o acesso à educação

2014 - Plano Nacional de Educação
- Estabelece como uma das metas a serem cumpridas até 2024 a universalização do acesso a educação de pessoas com deficiência, preferencialmente em escolas regulares

2015 - Lei Brasileira de Inclusão
- Estabelece o dever do governo de instituir projeto pedagógico para institucionalizar o atendimento educacional especializado, de tradutores e intérpretes de Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio

2019 - Decreto nº 9.465
- Extingue a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e cria a Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação

2020 - Política Nacional de Educação Especial (Decreto nº 10.502)
- Apontado como retrocesso, estimula a criação de escolas especiais, abrindo a possibilidade de encaminhar alunos com deficiência para esses espaços separados, após avaliação de uma equipe multidisciplinar (suspenso pelo STF)

Fontes: Ministério da Educação, Câmara dos Deputados, Unicef, Organização Internacional do Trabalho, Senado, Planalto, OAB, Diário Oficial da União

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