Candidatas do Enem se reconhecem no tema da redação: 'Demorou para cair a ficha que estavam falando das mães, de mim'

Inscritas contam que viram a vida refletida nos textos de apoio e no tema escolhido


Lilian Cristina, de 50 anos, fez o Enem Roberto Moreyra

Pela primeira vez fazendo o Enem, Janife dos Santos, de 51 anos, viu sua vida espelhada no tema da redação. Entre os textos de apoio que abordavam os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil, ela recordou as inúmeras vezes em que abdicou dos próprios sonhos para se dedicar à família. O mais recente deles foi ter se mudado de Curitiba (PR) para cuidar do neto em Camboriú (SC) para que a filha, de 31 anos, pudesse retomar os estudos.

— Demorou para cair a ficha quando comecei a ler os textos de apoio e entendi que estavam falando das domésticas, das babás, das mães, de mim. Eu abri mão da minha vida lá em Curitiba e vim cuidar da minha neta, tenho a minha casa e ainda a preocupação do banho, da comida, da escola dela — relata. — Fiquei muito emocionada e feliz pelo reconhecimento na prova porque o trabalho da mulher é invisível, mas ninguém vive sem.

Desde a infância, a vida de Janife, que está desempregada, é marcada pelo ato de cuidar de outros. Aos 10 anos, ela começou a acompanhar a mãe na função de empregada doméstica, e aos 11, desistiu dos estudos para ajudar nas despesas de casa. Décadas depois, o Enem passou a ser a chance de Janife poder dedicar um tempo a si mesma no curso de nutrição.

— O trabalho fora e em casa desde cedo me impediu de sonhar mais. Mas hoje o que me alivia é saber que minha filha não vai passar pelo que eu passei — afirma.

O tema da redação trouxe à luz uma questão estrutural da sociedade brasileira: mulheres que cuidam de familiares, de filhos, de companheiros e da casa e que muitas vezes têm duplas ou triplas jornadas diárias sem opção de escolha e sem remuneração ou reconhecimento. Segundo dados divulgados no último Censo do IBGE, as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais para as tarefas domésticas e de cuidado com outras pessoas, enquanto os homens despendem pouco mais da metade desse tempo (11,7 horas semanais).

A técnica de enfermagem Lilian Cristina, de 50 anos, também se enxergou na redação. A carioca, que fez a prova pela segunda vez este ano, abriu mão do curso de Ciências Políticas em uma universidade em Minas Gerais para cuidar da família.

— Eu tinha que escolher estudar ou trabalhar e sustentar a casa, então escolhi a minha família. Passei um tempo desligada disso para não me frustrar, mas no ano passado, decidi que faria a prova de novo por uma mudança de vida — contou Lilian.

Solidão feminina

A encarregada Fernanda Bulhões, de 42 anos, faz parte do grupo de mulheres que leva uma jornada tripla de trabalho. Atualmente, das 6h às 20h, ela trabalha em uma padaria na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e à noite ainda se dedica aos afazeres domésticos e aos cuidados com a mãe, de 72 anos, que tem enfisema pulmonar e não pode fazer esforço físico.

Na família de Fernanda, esse trabalho não remunerado é geracional e feito por mulheres negras: a filha, de 19 anos, também é responsável pelos cuidados da casa e da avó. Segundo dados do IBGE, num cenário de cuidado de pessoas, o recorte racial dispõe de mais desafios: enquanto 38% das mulheres pardas e 36,1% das pretas realizaram tais cuidados em 2022, a taxa de realização entre as brancas foi 31,5%.

Em um emaranhado de afazeres, Fernanda se sente solitária:

— Meu irmão só leva a minha mãe nas consultas, com a minha filha. Chego do serviço, vou arrumar a casa e tento refeições prontas. Tenho que dar todo apoio e atenção à minha mãe sem medir esforços, mas fico cansada. Sou rodeada de pessoas e mesmo assim me sinto sozinha, não gosto de dar trabalho para ninguém — desabafa.

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