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Brasileiros preferem o diálogo na educação de crianças, mas 62% toleram bater para 'filho não virar bandido', mostra pesquisa

Análise da Fundação Jose Luiz Egydio Setubal (FJLES) e do Instituto Galo da Manhã também apontou que 46% dos entrevistados concordan com o trabalho infantil para 'ocupar o tempo ocioso'
Criança lava as mãos ao entrar na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) São Paulo, na Vila Clementino, zona sul da cidade Foto: Deividi Correa / Agência O Globo
Criança lava as mãos ao entrar na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) São Paulo, na Vila Clementino, zona sul da cidade Foto: Deividi Correa / Agência O Globo

Uma nova pesquisa de opiniões e percepções da população brasileira sobre a criação dos filhos revelou avanços na educação sobre a igualdade de gêneros e no repúdio aos maus-tratos, mas também explicitou contradições. Apesar de a maioria dos entrevistados — 71,8% — acreditar que a educação infantil deve ser feita a partir do diálogo, as pessoas se posicionaram a favor da restrição de liberdades e do uso da violência em certos contextos, como em uma possível solução para o jovem "não virar bandido" (62%). Uma parte significativa dos entrevistados (46%) também concordou com o trabalho infantil, principalmente como forma de "ocupar o tempo ocioso".

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A pesquisa foi uma iniciativa da Fundação Jose Luiz Egydio Setubal (FJLES) e do Instituto Galo da Manhã, que atuam em iniciativas sociais voltadas à infância e populações vulneráveis, e realizada pelo Instituto Ipsos em 134 municípios, ao longo do mês de novembro. Dividido em três eixos principais, o trabalho avaliou a percepção dos brasileiros em relação ao período da infância, que seria até os 14 anos, segundo opinião dos entrevistados; a opinião sobre maus-tratos; e os desafios e conhecimento sobre serviços de apoio e denúncia.

Os pesquisadores destacam resultados positivos e negativos. Entre as ditas surpresas agradáveis, está o aumento da ideia de igualdade de gênero na criação das crianças, já que 72,9% dos entrevistados responderam que meninos e meninas devem ser criados da mesma forma. A porcentagem foi semelhante ao índice de concordância com a criação na base do diálogo (71,8%).

Essa visão de mundo, porém, se choca com valores mais tradicionais ainda arraigados na população, como o apreço pela disciplina, hierarquia e a aceitação de punições físicas em contextos específicos. Enquanto 81,6% dos entrevistados afirmaram que a criança deve sempre obedecer os mais velhos, sem questionamentos, 62,5% concordaram com a frase " é melhor bater hoje do que o filho virar um bandido".

— Há um sentimento dúbio, a população reconhece a importância do diálogo, mas também a violência — afirmou Marcos Paulo de Lucca-Silveira, professor de economia da FGV-SP e pesquisador da FJLES, que, junto a um comitê de especialistas em violência, analisou os resultados. — Existe uma tensão entre aceitar o diálogo como a melhor forma de educação, e do outro lado a concepção tradicional, que defende manutenção forte da hierarquia, disciplina e obediência. Nas perguntas específicas, essa visão mais tradicional retorna.

Pais comentam visões de criação

A cuidadora de idosos Renata Francisca Teles, de 37 anos, está entre os pais que acreditam que a palmada surte efeito no processo de educação dos filhos e serve como correção para que o filho não se desvirtue na idade adulta. Seguindo o exemplo que recebeu dos pais, ela conta que tem o diálogo como passo inicial para resolução de conflitos com os filhos de 15 e 3 anos, mas, acaso não obedeçam, não vê problema em "dar um tapinha na bunda".

— Se damos um tapinha hoje somos reféns da justiça, mas se nossos filhos crescem com má índole somos culpados por não saber educar. Eu vim de uma família que o olhar bastava para que eu obedecesse e aqui em casa tento ser assim, mas meu filho mais novo, por exemplo, só obedece se eu disser "para, senão vou te bater" — afirma.

Entre as variáveis socioeconômicas dos entrevistados, Silveira explica que os fatores de maiores influências foram o nível de educação e a reprodução da educação recebida na sua própria infância. Assim, pessoas com ensino superior e que responderam antes terem recebido criação baseada no diálogo foram os nichos que mais repudiaram o uso da violência. Já a idade e a origem geográfica, por outro lado, não exerceram muito impacto nos resultados.

— As pessoas reproduzem a educação que receberam. Talvez seja um sinal de esperança. Pode ser que, a médio prazo, tenhamos redução do reconhecimento de violência — disse Silveira.

Ao contrário de Renata e indo contra essa estatística da escolaridade, Elis Silva, de 43 anos, não defende a violência física na educação dos filhos. A confeiteira diz prezar pela conversa, mesmo em momentos de muito estresse. Apesar de ter tido uma infância rígida, no qual apanhava algumas vezes, ela acredita que o tapa pode estimular crianças a se revoltarem e terem medo dos pais.

— Aqui em casa os meninos já falam "lá vem o sermão", quando chamo eles para conversar. Se você bate, a criança não obedece, ela sente medo. Em alguns casos, ela até já sabe que vai apanhar, mas continua bagunçando porque não tem mais respeito pelos pais. Mas é muito complicado julgar, porque tem pessoas que dão muito amor e carinho para os filhos e eles crescem e viram bandidos, e tem pais super desleixados, que os filhos crescem super corretos — aponta.

Já o professor André Grimião se insere no perfil identificado pela pesquisa, de pessoas que receberam educação baseada no diálogo na própria infância e, assim, tendem a reproduzir a mesma filosofia com seus filhos. Para ele, que é pai de Antônio Carneiro, de 7 anos, não existe possibilidade de se estabelecer relação entre uso da violência e formação de uma pessoa boa.

—  As pessoas que dizem que apanharam e hoje são pessoas do bem talvez nem saibam, mas podem manifestar essa violência sofrida em outras áreas da vida dela —  afirma Grimião, que também se diz contra o trabalho infantil e a favor da criação com igualdade de gêneros. —  Com meu filho eu nem penso em levantar o dedo. Ele me respeita e eu não mudaria mesmo sele tivesse temperamento diferente. O diálogo é o caminho que acredito.

O professor André Grimião com seu filho Antonio Carneiro, de 7 anos Foto: Arquivo Pessoal
O professor André Grimião com seu filho Antonio Carneiro, de 7 anos Foto: Arquivo Pessoal

A psicóloga Julia Alves, mãe de Raul (3) e Stella (5) diz que recebia punições físicas pontuais, da mãe. Hoje, ela preza a comunicação não violenta, o inventivo à participação das crianças e o respeito mútuo como pilares para a criação que promove em casa, e também em seu trabalho, numa escola.

—  Sempre tento falar de forma calma, abaixar na altura da criança, e se for repreender atitudes, fazer isso sem ofender ou levantar a voz. Na primeira infância, o diálogo é muito sensorial e motor, e aos poucos a criança vai entendendo melhor seus sentimentos e vai se expressar melhor. Também é importante sempre levar a criança a sério, e acolher suas opiniões, para ela ser um sujeito na relação, e não um objeto —  explicou Alves, que observa, dentro da escola, e na literatura sobre o tema, como a punição propicia formação de crianças mais violentas. —  Na violência você só tem aquele ato, sem a mediação da palavra, não trata da questão central. Crianças que sofrem punição física têm maior propensão a serem violentas dentro da escola ou da casa, e de desenvolverem depressão e ansiedade.

No desafio de criar uma menina e um menino, Alves conta que ambos têm os mesmos brinquedos e o seu maior esforço é fazer com que Stella cresça sem se perceber como uma pessoa mais limitada, em relação ao irmão. Na própria escola em que trabalha, porém, ela diz que ainda enxerga um machismo entranhado, principalmente na divisão das tarefas, o que aumenta o desafio.

Para os especialistas, a aceitação de maus-tratos em alguns contextos reproduz um sentimento de banalização da violência. "As respostas sugerem que a população reconhece que práticas de maus-tratos e violências (psicológicas e físicas) estão presentes nas formas de educar da sociedade brasileira contemporânea. Mas, quando as pessoas são interrogadas sobre a aceitação de tais práticas e, especialmente, se as realizam, os números caem significativamente. Essas variações entre percepção de ocorrência, concordância e prática têm semelhanças com as encontradas em pesquisas de opinião famosas sobre racismo no Brasil: a maior parte dos brasileiros reconhecia a existência de racismo no país, mas não se considerava racista", diz um trecho da pesquisa.

Adriana Santos, pedagoga e gerente de educação do Sesc RJ, destacou o objetivo de se combater o trabalho infantil e de promover a redução da punição física na criação.

— O diálogo é a melhor saída sempre. Partilhar direitos e deveres e envolver crianças nas decisões, fazendo as se sentirem incluídas e ouvidas,  trazem benefícios de todas as ordens. E também precisamos nos mobilizar para se fazer cumprir a lei e impedir o trabalho infantil. Criança precisa estudar, praticar esportes, ter acesso ao universo cultural e brincar.

Aceitação de trabalho infantil

Em outro eixo do levantamento, os pesquisadores chamaram a atenção para o significativo apoio (46%) que os entrevistados deram à prática do trabalho infantil como forma de evitar que a criança fique ociosa. Essa justificativa superou até mesmo o argumento do trabalho infantil como ajuda financeira aos pais (26%).

— Essa justificativa mais aceita não era óbvia. Basicamente, a ideia do ócio se associa a ficar na rua.  Isso é muito próprio da realidade brasileira, um posicionamento muito claro anti ócio, anti rua, que se reflete num modo como educar, porque vivemos numa sociedade que tem graus de violência e desigualdade. Isso se expressa no medo de virar bandido — explicou Silveira.

Por último, a pesquisa também mostrou que apenas 33% dos entrevistados tomariam alguma ação se vissem crianças sofrendo maus-tratos na rua, chamando conselho tutelar ou abordando os responsáveis. A maioria (45%) respondeu que não agiria por desconhecer a situação ou não sentir necessidade de intervenção, e 17% disse que ficariam com medo de falar alguma coisa.

Associados a esses números, Silveira destacou que parte das pessoas desconhece instituições de apoio e de denúncia, como conselhos tutelares (10% desconheciam), ONGs (46%), Disque Denúncia (22%) e Centros de Assistência Social (18%). A pesquisa faz parte do 3º Fórum de Políticas Públicas da Saúde na Infância da FJLES, que termina nesta quarta. Ao final, o instituto lançará ações de prevenção contra violência infantil e incentivo e apoio a instituições parceiras que trabalhem nessa temática.

— Temos que trazer esse tema ao público, e não só tratar do assunto em eventos extremos. A população precisa ter clareza de que pode fazer denúncias, fortalecer assistências sociais e conselhos tutelares, que inclusive sofrem com queda de recursos. Fundamentalmente, nossa bandeira é ideia da prevenção. Essa pauta precisa ser levada para a escola, o ambiente onde normalmente ocorre a identificação de maus-tratos — explicou Marcos Paulo de Lucca-Silveira.