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Auxílio Brasil tem 'bom diagnóstico', mas o 'tratamento' pode piorar as coisas, diz Paes de Barros

Economista, um dos criadores do Bolsa Família, critica a ampliação dos benefícios do programa e diz que medidas podem gerar incentivos equivocados, tirando o foco da questão principal: o combate à pobreza

Por Idiana Tomazelli
Atualização:

BRASÍLIA - Um dos formuladores do programa Bolsa Família, o economista Ricardo Paes de Barros, pesquisador do Insper, afirma ao Estadão/Broadcast que o desenho do Auxílio Brasil ataca de maneira “inadequada” os problemas atuais da política social do governo. “O médico está fazendo um bom diagnóstico, mas está dando um tratamento que talvez possa piorar as coisas”, afirma. 

O Auxílio Brasil é a proposta do governo Jair Bolsonaro para suceder o Bolsa Família. Na entrevista, Paes de Barros critica a ampliação do público do programa, num momento em que a focalização deveria ser a prioridade, e aponta medidas que podem gerar incentivos equivocados. O economista também afirma que os auxílios voltados à inclusão produtiva previstos no texto são “cortina de fumaça”, uma vez que o programa não tem nada voltado efetivamente para esse fim.

'Eu acho que precisa focalizar melhor o Bolsa Família'. diz Ricardo Paes de Barros. Foto: Helvio Romero/Estadão - 24/9/2019

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Quais são as principais diferenças entre o Bolsa Família e o Auxílio Brasil?

O governo está tentando enfrentar uns cinco problemas que o Bolsa Família historicamente tem. Em certo sentido, é um andar para frente. Eu não tive acesso aos estudos que dão base a essa proposta, mas é uma tradição que o ministério tem de ter uma base sólida. Mas ela (proposta) parece não tão bem idealizada. Estão tentando mexer em alguns pontos importantes, mas de uma maneira meio inadequada. O médico está fazendo um bom diagnóstico, mas está dando um tratamento que talvez possa piorar as coisas.

Quais eram os problemas do Bolsa?

O Bolsa Família tinha três grandes desafios, que acho que a gente não está enfrentando. Um desafio é organizar melhor a fila e ser mais bem focalizado, isso não está sendo atacado. Outro grande desafio era retomar o pilar da inclusão produtiva que a gente tinha no Brasil Sem Miséria, e a gente definitivamente não está atacando isso, embora a palavra inclusão produtiva apareça a toda hora. Ela se dá pela oferta de oportunidades, intermediação de mão de obra, assistência técnica, apoio à comercialização... Aqui (no Auxílio Brasil) não tem muito isso. É um programa de transferência de renda que tenta juntar várias transferências para as famílias. Sem a inclusão produtiva, os 5 a 10 milhões de trabalhadores que perderam o trabalho na pandemia terão dificuldade em voltar à sua vida economicamente ativa. Esse programa em si não ajuda em nada. E o risco é que ele colocou uma certa cortina de fumaça, porque fala muito de inclusão produtiva, mas não tem nada disso dentro dele.

Como assim?

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Por exemplo, uma coisa muito importante para os pais que querem trabalhar é poder ter uma creche para deixar seus filhos. E uma das coisas malucas no Brasil é que a taxa de cobertura de crianças de famílias pobres de mães que trabalham é muito baixa e menor do que a média. A nossa fila para a creche está mal organizada. Essa proposta cria um Auxílio Criança Cidadã. Você é uma família do programa? Está trabalhando? Seu filho está na creche? Não, então vamos dar um jeito nisso. Dá uma espécie de cupom com que você vai conseguir vaga numa creche, no setor privado. A intenção de dar acesso à creche é muito boa. Agora, a maneira de fazer parece totalmente desarticulada e desarticuladora das redes de educação infantil municipal. A maneira de fazer isso seria dizer para cada município organizar adequadamente sua fila de acordo com certos critérios. Famílias pobres que querem trabalhar ou estão trabalhando têm prioridade. Se a gente fizer isso, vai aumentar o número de famílias do Bolsa Família com acesso à creche. É claro que, como cada município tem a sua autonomia, vou ter que negociar isso.

Hoje cada município tem o próprio critério?

Sim, mas é muito fácil. Pega o dinheiro e convence o município que aderir ao programa. Ele adere, recebe um dinheiro a mais. O que a presidente Dilma (Rousseff) fez no Brasil Carinhoso? Ela dobrou o benefício do Fundeb para creche se a criança for do Bolsa Família. Claro, quem não quiser participar não participa, mas negocia com a vasta maioria. Vai ter um impacto muito maior do que o que está sendo proposto, um custo muito menor, e obviamente aquele município que já deu prioridade e continua sem vagas você pode dar dinheiro a mais para contratar setor privado ou fazer de maneira estatal. Nada contra a provisão privada desse serviço público, mas o município poderia ter muito mais poder para negociar, como um grande monopolista local, com essas instituições e com um número grande de vagas. Tem outro problema, eles estão preocupados só com os pais ocupados. Grande parte dos pais que precisam de creche estão desempregados, procurando trabalho.

Há algum outro problema relacionado à inclusão produtiva?

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Da mesma maneira, a proposta diz que eu tenho que incentivar as pessoas a trabalharem. Aí surge o tal Auxílio à Inclusão Produtiva Urbana. Se você tiver alguma renda do trabalho eu te dou uma transferência adicional. Parece uma ideia legal. Mas vamos olhar para trás no programa. Isso é um remendo em cima de uma série de coisas erradas. Você quer incentivar o trabalho? Para medir a pobreza da família, devia não contabilizar a renda do trabalho. Se ganhar, não vai fazer você parecer menos pobre, até um limite. O que essa proposta faz? Ela diz que se recebeu o BPC (Benefício de Prestação Continuada, no valor de um salário mínimo), não conta. Se trabalhar, conta toda a renda bruta. Se você recebe seguro-desemprego, não conta. Mas se trabalha, conta. Se você fez um bico, conta. Então não dá pra entender... está medindo a pobreza de alguém pela renda do trabalho. E pelo benefício de superação da extrema pobreza, se sua renda do trabalho aumentar R$ 100, o que vai receber é R$ 100 a menos. Você está trabalhando para quem? Para o Ministério da Cidadania. Você vai ganhar R$ 100 e eles vão descontar R$ 100.

Como resolver?

Se você quer incentivar a renda do trabalho, teria que fazer alguma coisa do tipo até R$ 500 não considera. A partir daí eu considero a metade, e a partir de R$ 1 mil, toda a renda do trabalho. Tem um problema grave no desenho que atrapalha, desincentiva as pessoas a terem renda do trabalho, porque quanto mais renda do trabalho eles têm, maior a chance de eles saírem da parte de extrema pobreza e perderem o benefício. Isso é um impacto gigantesco. Depois que criou esse desincentivo todo, você tentar criar um incentivo que é se você tiver um emprego, e tem que ser emprego com carteira, ou seja, desincentivo também ao empreendedorismo, a uma empregada doméstica que poderia trabalhar em vários lugares... Não entendi a lógica.

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O sr. citou três desafios. Qual é o terceiro?

A terceira coisa que para o Bolsa Família era muito importante, mas estamos andando de marcha à ré, é essa necessidade de integrar melhor o governo federal, estadual, municipal, o Centro de Referência de Assistência Social. Ter um Bolsa Família que o governo federal saiba descentralizar para que o CRAS lá na ponta possa identificar os pobres. Aproveitar esses nove mil CRAS espalhados pelo Brasil para entregar recurso para quem realmente mais precisa de maneira adequada. Nisso a gente anda de marcha à ré.

O sr. falou da focalização, por que não está sendo endereçada?

Realmente está na hora do Brasil ser mais generoso, dar uma expandida no Bolsa Família. Minha opinião é que a gente tem que dar maiores benefícios para quem mais precisa. Mais para talvez um número menor de pessoas. Se o objetivo aqui vai ser aumentar o número de beneficiários, eu não acho que a gente tá indo na direção correta. Vai pulverizar mais os recursos, e a gente tinha que, para combater a pobreza mais eficazmente, concentrar mais, identificando aqueles que mais precisam.

O sr. critica a expansão pela expansão?

Eu acho que precisa focalizar melhor o Bolsa Família. Ele atende a família A e a família B, e ele dá mais ou menos o mesmo benefício para A e B. Só que A precisa de muito mais, e B não precisa tanto. Então tem que pegar parte dos recursos que dou para B e dar para A. Isso é melhorar a focalização. O Brasil devia focar sua atenção a um número até menor de famílias e dar a essas famílias um valor de benefício bem maior. Mas qualquer generosidade é bem-vinda. Se ela for um benefício um pouco maior para um número maior de pessoas. Ok. Bom. Não é ruim. Seria melhor se fosse um benefício muito maior para quem mais precisa.

O sr. vê outros problemas?

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Tem mais duas coisas que estão na direção certa, mas de forma estranha. A primeira é que, ainda mais em um mundo de pandemia, é importante dar incentivo para o jovem concluir o ensino médio. Então a extensão para 21 anos é uma boa ideia. Agora, é feita de uma maneira que eu gostaria de ver a razão pela qual foi escolhida. A primeira razão é: se você tem 15 anos, pensa que se concluir o médio aos 17, vão tirar minha bolsa aos 17. Se der uma embromada e ficar até os 19, vou ter bolsa até os 19. Porque quem conclui perde a bolsa. Por que não se diz que vai dar uma bolsa para quem estiver cursando ou para quem concluir? Em princípio deveria dizer que vai manter a bolsa. É claro que fica mais caro. E é claro que depois de concluir o ensino médio não está incentivando nada, mas incentivou lá atrás. Outra coisa, é difícil entender que, para um jovem de 20 anos, dar o dinheiro para mãe não é incentivo tão grande. Por que não dá o dinheiro para ele? Esse programa não é mais um programa de combate à extrema pobreza, ele também dá incentivos.

Qual sua avaliação sobre as bolsas de mérito?

Todos nós somos a favor de celebrar ações de mérito da nossa juventude. Agora, essa é a melhor maneira de fazer? Acho que não, por duas razões básicas. Primeiro, nós estamos dizendo que mérito é ou esporte ou ciência. E tem um monte de mérito que não é esporte nem ciência. Um jovem que trabalha duro para a garantia dos direitos humanos na comunidade, ajuda na conservação do meio ambiente, serve de tutor para os menos jovens. Um jovem que tem um profundo respeito pela diversidade, não faz bullying. Tem uma série de características, ações que um jovem pode fazer que a sociedade brasileira inteira consideraria de alto mérito. O governo federal não sabe quem são esses jovens, mas nem precisa saber. Claramente a escola sabe quais são os alunos com alto mérito. Seria natural pegar cada escola e dizer ‘tenho aqui cinco auxílios para sua escola escolher cinco jovens que, numa noção multidimensional, tem méritos’. Pode até escrever um manual dizendo, a Rayssa (Leal, medalhista em Tóquio no skate), você inclui ela, ela ganhou uma Olimpíada. Não tira autonomia, mas dá um guia. Aqui (no Auxílio Brasil) você olha o mérito de uma maneira totalmente bidimensional e está usando uma medida relativamente tosca, quando o agente local tem maneira melhor de avaliar. Esse é outro caso, parecido com o da creche, em que a gente está federalizando decisões que deveriam ser completamente locais. Decisões que parecem inadequadas foram tomadas.

O Auxílio Brasil também permite a contratação de empréstimo consignado, vinculado ao benefício. Qual é sua avaliação?

Quanto mais a gente avança nesses programas de transferência de renda e mais a gente alcança a inclusão financeira, mais importante vai ser a educação financeira para essas pessoas. A autonomia deve ser preservada. Ele poderia pegar o cartão dele e dar para um agiota. Ele pode fazer grandes bobagens com o dinheiro. Então, eu não seria contra essa possibilidade de consignar. Mas o programa deve vir junto com uma atenção do CRAS com a educação financeira, levar mais informação sobre o que tudo isso significa. Acredito que os pobres são bem inteligentes, aprenderam com dificuldades, sabem muito bem como sobreviver, então nunca achei que restringir o leque de opções ajudaria.

Como o sr. vê essa virada na postura da presidente, que quer turbinar um programa ao qual ele já se referiu como “voto de cabresto”? O sr. vê interesse eleitoral?

O pobre brasileiro não está querendo saber por que o Executivo está querendo fazer isso. Eu não sei dizer quais as intenções eventuais que possam existir, mas certamente essa mudança no programa pode ajudar a reduzir a pobreza. Não me parece um desenho de muita qualidade. Agora, não é um retrocesso.

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As pessoas entendem mais a importância do programa?

O Bolsa Família se tornou um programa consensual, queridinho de todos. Minha preocupação é não transformar um programa tão exitoso quanto o Bolsa Família num programa que vai perdendo seus méritos porque o desenho vai piorando ao longo do tempo. E o que está propondo aqui não é menos generoso, mas me parece pior desenhado.

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