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Brasil

Ausência de diretrizes atrapalha plano de volta às aulas para alunos com deficiência

Orientação federal previa atraso no retorno da educação especial, mas autoridades locais buscam alternativa, para evitar discriminação
Flávia Pereira auxilia em estudos a filha Manuela, de 15 anos, que é cadeirante e tem comprometimento cognitivo Foto: Jorge William / Agência O Globo
Flávia Pereira auxilia em estudos a filha Manuela, de 15 anos, que é cadeirante e tem comprometimento cognitivo Foto: Jorge William / Agência O Globo

BRASÍLIA - Em meio à atual pandemia da Covid-19, as incertezas sobre o retorno à escola preocupam famílias que têm estudantes com deficiência. Embora a condição não coloque os alunos automaticamente no grupo de risco para o novo coronavírus, parte deles tem necessidades específicas que demandam um olhar diferenciado. Enquanto na esfera federal as diretrizes para a retomada da educação especial atrasaram após um parecer ter sido considerado discriminatório, gestores locais buscam outras referências para elaborar protocolos de reabertura. A insegurança, no entanto, é a realidade da maior parte dos pais.

Flávia Pereira, de 45 anos, já decidiu que a filha mais velha, Manuela, de 15 anos, não voltará caso as aulas presenciais sejam retomadas em breve. A adolescente, aluna do 6° ano de uma escola pública regular de Brasília, tem sequelas motoras e cognitivas de uma malformação congênita. Devido à restrição de movimentos, Manuela depende de terceiros para várias atividades, o que deixa a mãe receosa em meio a uma pandemia que tem como regra número um evitar ao máximo o contato entre as pessoas.

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— O contato é inevitável para ela, que depende de outra pessoa para conduzir a cadeira (de rodas), ajudar a manusear os materiais, entregar o lanche a uma distância em que ela consiga comer sozinha. Nosso medo é grande — afirma Flávia.

Apesar de ressaltar as necessidades específicas de Manuela, Flávia afirma que também não deixará o filho mais novo, George, de 13 anos, voltar à escola se a reabertura ocorrer em breve. Na avaliação dela, ainda não há segurança para os estudantes retornarem presencialmente às escolas.

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Um estudo do Instituto Rodrigo Mendes, que analisou experiências de 23 países no atendimento educacional de pessoas com deficiência, aponta que alguns não fizeram regras específicas para a retomada, enquanto outros elaboraram normas voltadas ao público em questão. Nem todas as medidas, porém, são consideradas positivas pelos especialistas, como as adotadas em Cingapura e na Dinamarca, onde o retorno dos alunos com deficiência foi postergado em relação aos demais estudantes.

— Quando as autoridades estiverem seguras para abrir as escolas, todos devem ter o direito de voltar, inclusive os estudantes com deficiência. É um equívoco estabelecer uma correlação direta entre grupo de risco e deficiência — defende Rodrigo Hübner Mendes, superintendente do instituto que leva seu nome.

O Brasil tem cerca de 1,2 milhão de alunos na educação básica com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento ou altas habilidades, segundo dados do Censo Escolar 2019. Desse total, 87% estão em classes comuns, o que representa uma vitória da educação inclusiva.

Em 2006, por exemplo, esse grupo somava apenas 700 mil alunos, dos quais menos da metade (46,4%) estava nas turmas regulares, convivendo com colegas sem deficiência, e a maioria (53,6%) frequentava classes especiais ou escolas especializadas, consideradas menos inclusivas.

Melina Sales dos Santos, de 40 anos, conta que a convivência com outras crianças sempre guiou a família na educação de Zilah, de sete anos, que tem síndrome de Down. Desde bebê, ela apresenta um comprometimento na imunidade com tendência a ter pneumonias repetitivas, conta Melina. Com a chegada da Covid-19, os pais optaram por suspender todas as atividades presenciais de Zilah, que estuda em uma escola particular de Brasília, onde o setor educacional privado trava batalha na Justiça para reabrir.

— Sabe-se muito pouco sobre esse vírus. Enquanto não houver uma vacina ou tratamento efetivo, nossa opção será ficar em casa. Um ano letivo que pode ser perdido não vale o sacrifício de expor seu filho a uma internação ou até mesmo ao risco de perdê-lo — diz Melina, lamentando que nem todos tenham a mesma opção:

— Eu e meu marido conseguimos trabalhar mais em casa e temos formação para acompanhar as atividades pedagógicas dela pelo ensino remoto. Mas a gente vive num país muito desigual e nem todos podem fazer da mesma forma.

Melina Sales dos Santos com a filha Zilha, de 7 anos, que tem Síndrome de Down.
Foto: Jorge William / Agência O Globo
Melina Sales dos Santos com a filha Zilha, de 7 anos, que tem Síndrome de Down. Foto: Jorge William / Agência O Globo

Item obrigatório na pandemia, o uso de máscara dificulta a comunicação de Gabriella Medeiros Sarmento, que tem surdez profunda e autismo. A moça de 27 anos, que estuda em um centro especializado da rede pública em Brasília, usa a Língua Brasileira de Sinais (Libras), em que a leitura gestual é parte importante para a compreensão.

Às vezes, quando precisam usar a máscara, ela e a mãe acabam tendo que tirá-la por um curto tempo para se fazerem entender, conta Virgínia Medeiros, de 49 anos. Uma saída encontrada foi uma máscara com plástico transparente na frente. Mas, no contexto do retorno às aulas, o tema preocupa a família.

— Não estou segura para um futuro retorno. Ela é até consciente e aguenta firme. Mas a gente sabe que tem hora que a máscara pode sufocar, precisa tirar. É complicado — afirma Virgínia.

Gabriella tem deficiência auditiva e a mãe, Virgínia Medeiros, se preocupa com as dificuldades que enfrentará na volta às aulas
Foto: Jorge William / Agência O Globo
Gabriella tem deficiência auditiva e a mãe, Virgínia Medeiros, se preocupa com as dificuldades que enfrentará na volta às aulas Foto: Jorge William / Agência O Globo

O Ministério da Educação (MEC) homologou no início deste mês um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre retomada das aulas presenciais, mas excluiu a parte que tratava da educação especial, que será refeita pela entidade.

O texto foi considerado discriminatório, por condicionar a volta do aluno com deficiência a uma avaliação da equipe da escola ou a uma curva de contaminação em queda. Estabelecia ainda alguns casos em que por enquanto as atividades presenciais não deveriam retornar, como para os surdos, em função da dificuldade com máscaras; e cegos, que necessitam do contato com corrimões e bengalas para se locomover.

A professora Suely Melo Menezes, conselheira do CNE que prepara um novo texto para ser votado em setembro na entidade, diz que o objetivo do parecer anterior foi proteger um grupo que apresenta vulnerabilidades, dentro dos marcos legais existentes.

— No início da pandemia, foi definido que os idosos eram vulneráveis. Eles se sentiram protegidos, e não discriminados. Foi esse o sentido que quisemos dar. Sabemos que nem toda escola terá estrutura adequada e a norma, sozinha, não supera o desaparelhamento e as más condições —diz Suely.

Proteção para todos

Para Ana Cláudia Figueiredo, coordenadora do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, que integra a Rede Brasileira de Inclusão (Rede-In), os protocolos cometem discriminação quando distinguem com base na deficiência. As necessidades específicas, diz ela, devem estar previstas nas diretrizes, mas de forma geral, alcançando até as crianças sem deficiência que podem ter determinada vulnerabilidade.

— O Estado não pode, sob o argumento da proteção, estabelecer regras distintas. Se quero evitar que uma criança cega passe a mão em locais contaminados, preciso estabelecer a limpeza das superfícies, para proteger todos os alunos. Pode-se prever a dispensa do uso de máscara para alunos com dificuldade de adequação, mas não pela deficiência.

Presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Martins Garcia defende que os alunos com deficiência voltem no mesmo período que os demais. A entidade, que emitiu nota contra o parecer do CNE, elaborou diretrizes que atendem as necessidades dos alunos com deficiência mas dentro de uma visão abrangente de cuidado. O documento vai auxiliar cada município a adotar suas próprias regras quando decidir reabrir.

— Esse aluno não é um peso para a volta das escolas. O problema que temos é a insegurança com o momento, a falta de recursos em geral e outras questões de sempre. Mas a gestão municipal faz um esforço grande no processo de inclusão. Em geral, esses estudantes têm um acompanhante individual, e isso não muda — afirma Garcia.

O MEC informou, em nota, que os sistemas de ensino são autônomos para editar os protocolos sanitários de retorno à escolas. A pasta destacou tomar medidas voltadas para a educação especial, citando um repasse de R$ 5 milhões de reais, por meio de articulação com universidades, mas não explicou se os recursos já foram aplicados e em quais ações.

A pasta menciona o futuro lançamento de uma cartilha para educação bilíngue de surdos com orientações para o retorno das aulas presenciais e diz que "ainda aguarda o lançamento da Política Nacional de Educação Especial e do curso Atendimento Educacional Especializado no Contexto da Pandemia”.