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Aulas online em arranjo emergencial 'reprovam' ensino a distância no país

No Brasil e em muitas partes do mundo, educação à distância não está ao alcance de todos - Annie Spratt/ Unsplash
No Brasil e em muitas partes do mundo, educação à distância não está ao alcance de todos Imagem: Annie Spratt/ Unsplash

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

16/06/2020 04h00

Passou o Carnaval, a quaresma, a quarentena desde março, virou abril, maio, junho e, às vésperas de julho (época das férias estudantis em tempos "normais"), o calendário de 2020 parece paralisado pela pandemia no mundo todo. Inclusive para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), cuja nota conta para as universidades no Brasil.

Às 23h59 de 27 de maio, foram encerradas as inscrições para o exame, totalizando 6,1 milhões de estudantes inscritos (o menor número desde 2011). Antes prevista para novembro, a prova foi adiada por 30 a 60 dias, após pressões de movimentos de estudantes, docentes e dirigentes educacionais, pois a maioria das escolas está fechada devido à pandemia de Covid-19. Neste fim de junho, novas datas serão decididas após enquete feita com os participantes inscritos, na "Página do Participante". Mas adiar o exame até dezembro de 2020 ou janeiro de 2021 será o suficiente para garantir condições minimamente iguais para todos?

Ainda é incerta a data de reabertura das escolas no Brasil, atual epicentro americano do novo coronavírus — que registra um dos maiores números diários de casos e mortes no mundo.

"Pré-covid, já era ruim. Pós-covid, o abismo é ainda maior", sintetizou o cientista político Marcio Black, coordenador de mobilização social da Fundação Tide Setubal, no UOL Debate sobre educar durante a pandemia. Especialistas em políticas educacionais vêm destacando como a desigualdade de acesso à internet e aulas adaptadas para o ensino remoto podem prejudicar estudantes pobres na disputa por vagas nas universidades no Brasil.

De um lado, nem todo aluno possui acesso à internet: é o caso de 33% das casas brasileiras, segundo dados do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil) de 2018. Entre os alunos de 6 a 19 anos, a marca é de quase 20%, de acordo com levantamento do Instituto Ayrton Senna, a partir de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017. De outro, não é só o acesso à internet que conta: nem todo professor é youtuber de "aula show", domina didática e ferramentas tecnológicas para EaD (Educação a Distância) emergencial ou possui condições — inclusive psicológicas — para continuar lecionando dentro de casa como se nada estivesse acontecendo "lá fora".

EaD SOS

Nos Estados Unidos, o exame SAT (um tipo de avaliação dos alunos ao fim do colegial norte-americano) foi adiado. No Reino Unido, foram canceladas as avaliações para admissão às universidades neste ano — e adotadas alternativas como análise de simulados e provas feitas anteriormente pelos estudantes. A indicação da Unesco é: para decidir, neste momento, manter ou não exames nacionais, os países devem considerar fatores como segurança, saúde e bem-estar emocional de estudantes e equipes educacionais. "As decisões devem ser motivadas por preocupações com a justiça, a igualdade e a inclusão", diz o documento da agência para educação das Nações Unidas.

No Brasil, a discussão sobre tais fatores é antiga e atual. O calendário, embora atribulado, continua correndo, englobando ensino online e EaD, que vêm sendo "glamourizadas" como tendências do futuro high tech pós-pandemia — para estudantes de famílias ricas, diga-se.

EaD é a modalidade na qual estudantes e professores estão fisicamente distantes, mas há material pedagógico especialmente elaborado para desenvolver aprendizagens, o que requer recursos e infraestrutura, como envio de materiais didáticos, transmissão de aulas via internet, rádio ou TV. Ensino online e e-learning são cursos desenvolvidos, gerenciados e ofertados apenas via internet.

Entretanto, o que está sendo implementado no Brasil, às pressas pela pandemia, não é de fato ensino online ou EaD. É "ensino remoto emergencial".

A expressão quer dizer que se trata de uma mudança "temporária e improvisada" do ensino presencial para o remoto, diz ao TAB o psicólogo Hélder Lima Gusso, professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que pesquisa tecnologias de ensino. "Ou seja: professores e alunos distantes, sem materiais pedagógicos específicos elaborados, sem infraestrutura, sem dimensionamento das condições de acesso e sem suporte a alunos e professores." Isto é, não basta ter banda larga e um iMac de 11 mil reais — ou internet intermitente e um PC antigo para dividir com sete irmãos —, pois o processo de ensino e aprendizagem é mais do que um like no YouTube.

Não há YouTube que substitua um bom professor
Hélder Lima Gusso, professor da UFSC

Crise inédita

Idealizado a partir da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), em 1996, e iniciado em 1998 para avaliar o desempenho dos estudantes no fim da educação básica, o Enem passou a contar no acesso ao ensino superior, a partir de programas como Sisu (Sistema de Seleção Unificada) e Prouni (Universidade para Todos) desde 2009.

"Mesmo em tempo de 'normalidade', não temos igualdade de condições entre todos. Entretanto, não estamos em tempos normais e essa desigualdade é muito ampliada, sobretudo diante da ausência de políticas públicas efetivas de enfrentamento", critica Gusso.

Durante a crise provocada pela pandemia, escolas públicas tiveram poucas orientações na adaptação do ensino presencial ao ensino remoto. "Professores ficaram à própria sorte, com a exigência de ministrar aulas online de repente. Secretarias demoraram para responder, outras apresentaram diretrizes contraditórias." Enquanto isso, escolas particulares saíram na frente, com mais recursos e com mais alunos já munidos de aparatos tecnológicos.

Se "fazer nada" e já considerar o "ano letivo perdido" não é o melhor caminho, entra o ensino emergencial como alternativa histórica de educação para períodos de crise, como contextos de guerra, conflitos e catástrofes. É a primeira vez que uma pandemia impõe essas questões no mundo todo.

Para Gusso, é preciso dar continuidade ao ensino, com menos foco nos conteúdos curriculares e mais no suporte social e apoio psicológico a estudantes, pais e professores. Ele cita como exemplo as diretrizes da Global Coalition to Protect Education from Attack, que reúne instituições como Human Rights Watch e agências das Nações Unidas para educação (Unesco), infância (Unicef) e refugiados (Acnur).

Calendário novo

"Para implantar um EaD 'ad hoc emergencial', é preciso apoio das instituições e disponibilidade de internet, inclusive para professores", diz Marina Feferbaum, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), que pesquisa inovação e tecnologias de ensino. Para o aluno, o apoio familiar é fundamental para garantir condições psicológicas e físicas para estudar, como tempo e espaço exclusivo para o estudo.


papel do Estado arquitetar a política educacional, traçando linhas para lidar com a ruptura do ensino presencial, tanto para a rede pública como para a particular. Parte significativa da população não possui acesso à internet, mas essa talvez não seja a maior das dificuldades. Embora muitos não tenham internet, parte das famílias possui um celular. Liberar acesso para conteúdo educacional seria factível, o que poderia ser feito com a rede existente e com o acesso custeado pelo poder público. Ou seja, o problema não é o EaD em si, mas como ele é feito", destaca a especialista.

EaD envolve planejamento do professor e condições de engajamento do aluno. Não se trata apenas de gravar vídeo, mas adaptar tudo para plataformas diferentes. Uma live não é exatamente uma aula - até nas aulas expositivas, em que o professor palestra e os alunos ouvem, há interação direta e na hora: alunos levantam dúvidas, dialogam, questionam.

Educação envolve diferentes questões para cada faixa etária, especialidade e realidade. O que é comum agora é a necessidade de redesenhar o calendário dos diversos cursos, o "enquadramento temporal".

A discussão se apoia em uma visão rígida de temporalidade baseada no ano fiscal. A ideia de 'Enem de 2020' envolve uma preconcepção de que o ano escolar termina ritualisticamente em 31 de dezembro. Isso dificulta encontrar soluções adequadas.
Marina Feferbaum, pesquisadora da FGV

Diante da pandemia, tudo está indefinido: a possibilidade de implantar o EaD emergencial a tempo para todos, o cumprimento do cronograma dos cursos via EaD e a duração do isolamento até o tal "novo normal" se instaurar no país. "Daí flexibilizar a ideia de calendário anual, descolando-o do ano fiscal, para ajustá-los nos anos que seguirão à nova normalidade."

No futuro pós-pandemia, na volta às aulas presenciais, a tecnologia será um importante instrumento pedagógico, aposta Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais do movimento Todos pela Educação. "A tecnologia é aliada contínua, mas não substitui o ensino presencial e vai muito além de dar sequência a soluções temporárias de ensino remoto ou simplesmente 'digitalizar a aula'", diz.