Exclusivo para Assinantes
Brasil Educação

Atraso no Fies bate recorde, e dívida chega a R$ 13 bilhões

Em meio a estagnação econômica, 3 em cada 5 estudantes estão com parcelas atrasadas e enfrentam dificuldades em quitar o financiamento estudantil
Willian Costa tem dívida de R$ 10 mil com o Fies por uma graduação que não conseguiu concluir Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
Willian Costa tem dívida de R$ 10 mil com o Fies por uma graduação que não conseguiu concluir Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo

RIO — Foram cinco semestres estudando Engenharia de Produção na Universidade Moacyr Bastos, na zona oeste do Rio, até que uma gravidez de alto risco interrompesse o sonho da graduação da carioca Tatiane Oliveira, de 30 anos.

Daquele período, acumulou muitas horas-aula e uma dívida de R$ 50 mil com a Caixa Econômica Federal (CEF) ao usar o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para bancar o curso. Além de não se formar, Tatiane luta há dois anos para quitar o débito que se avoluma.

— Foi a única oportunidade que tive para estudar, não havia outra maneira. Agora, ou bem tento resolver essa conta parcelando tudo por 15 anos ou recomeço a faculdade — desabafa.

Tatiane não está sozinha. De acordo com dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), 59% dos 899.957 contratos em fase de consignação estavam com pelo menos um dia de atraso no pagamento em janeiro.

Isso significa que 3 em cada 5 estudantes que usaram o Fies para pagar a faculdade estão inadimplentes. A grande maioria (45%), por mais de 90 dias. A dívida acumulada por esses acordos já ultrapassa R$ 13 bilhões, um recorde na história do fundo, que está completando 20 anos de existência.

REFINANCIAMENTO

Na tentativa de recuperar parte dos recursos investidos, o FNDE anunciou um refinanciamento inédito para estudantes que firmaram contrato com o Fies até o 2º semestre de 2017. A revisão deverá ser pedida entre 29 de abril e 29 de julho, diretamente na CEF ou no Banco do Brasil. A expectativa do órgão é que a renegociação das dívidas contribua para a queda da inadimplência.

Dados do FNDE permitem traçar um perfil do inadimplente, e a maioria deles é como Tatiane: mulher, jovem, no início do financiamento e com renda familiar de no máximo 1,5 salário mínimo.

De acordo com o órgão, metade dos estudantes endividados possuía até 24 anos no início da faculdade. 60% deles são do sexo feminino, 79% têm renda de até 1,5 salário mínimo e 89% se declararam branco ou pardo na hora da matrícula.

MEU DIPLOMA, MINHA DÍVIDA
Financiamento estatal para universitários criou geração endividada
Número de contratos do
Fundo de Financiamento
Estudantil (Fies)
732.673
559.889
377.866
287.473
203.639
175.991
154.216
82.424
76.129
49.083
32.594
33.146
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
58%
Taxa de inadimplentes
com o Fies
52%
47%
42%
A inadimplência nos
anos anteriores a 2015 é
considerada insignificante
pelo FNDE
2015
2016
2017
2018
Valor em atraso
com Tesouro
0,323
1,3
5,2
13,1
Em R$ bilhões
Quantidade de contratos em amortização
e com pelo menos um dia de atraso
Por faixas de idade
Por faixas de renda
(salários mínimos)
259.881
237.605
até 1 salário
de 18 a 24
157.320
139.488
acima de 1 a 1,5
acima de 24 a 30
56.296
65.730
acima de 1,5 a 2
acima de 30 a 35
142
34.934
acima de 10 a 20
acima de 35 a 40
24.493
17.804
acima de 2 a 2,5
acima de 40 a 45
12.846
8.861
acima de 2,5 a 3
acima de 45 a 50
16.627
3.908
acima de 3 a 5
acima de 50 a 55
3.286
1.870
acima de 5 a 10
acima de 55
7
20.682
acima de 20
menor de 18
7
sem registro
Por sexo
Por raça
Masculino
207.399
Negro
70.792
Índio
1.431
Feminino
323.490
Branco
232.849
Pardo
214.109
Fonte: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)
MEU DIPLOMA,
MINHA DÍVIDA
Financiamento estatal para universitários criou geração endividada
Número de contratos do
Fundo de Financiamento
Estudantil (Fies)
732.673
82.424
49.083
2007
08
09
10
11
12
13
14
15
16
17
2018
Taxa de inadimplentes
com o Fies
A inadimplência nos anos
anteriores a 2015 é considerada
insignificante pelo FNDE
58%
52%
47%
42%
2015
2016
2017
2018
Valor em atraso com Tesouro
Em R$ bilhões
2015
2016
2017
2018
0,323
1,3
5,2
13,1
Quantidade de contratos
em amortização e com pelo
menos um dia de atraso
Por faixas de idade
237.605
de 18 a 24
139.488
acima de 24 a 30
65.730
acima de 30 a 35
34.934
acima de 35 a 40
17.804
acima de 40 a 45
8.861
acima de 45 a 50
3.908
acima de 50 a 55
1.870
acima de 55
20.682
menor de 18
7
sem registro
Por faixas de renda
(salários mínimos)
259.881
até 1 salário
157.320
acima de 1 a 1,5
56.296
acima de 1,5 a 2
142
acima de 10 a 20
24.493
acima de 2 a 2,5
12.846
acima de 2,5 a 3
16.627
acima de 3 a 5
3.286
acima de 5 a 10
7
acima de 20
Por raça
Negro
70.792
Índio
1.431
Branco
232.849
Pardo
214.109
Por sexo
Masculino
207.399
Feminino
323.490
Fonte: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)

A inadimplência com o Tesouro acontece ao mesmo tempo em que o número de novos contratos do programa regrediu ao patamar de 2010. Em 2018, foram concedidos 82.424 novos termos de financiamento — quase dez vezes menos do que em 2014 (732.673 contratos). Naquela época, houve uma flexibilização nas bolsas, com relaxamento da exigência de fiador e prazo de quitação alongado — carência de 18 meses após a formatura.

A medida fez com que a taxa de inadimplência aumentasse ano após ano, colocando em risco o financiamento de novos estudantes.

Desde 2007, o carioca William Costa, de 38 anos, pena para pagar o parcelamento da graduação em História, que não concluiu por ter de trabalhar em tempo integral para se bancar. Sua dívida, estimada em R$ 10 mil, já o acompanha há dez anos. Ele não conseguiu fiador para refinanciá-la.

— Não recomendo o Fies para ninguém. Meu nome está sujo desde 2007 e não consigo fazer um acordo para pagar a dívida referente ao período em que usei o crédito estudantil — conta Costa, que sonha recomeçar a graduação em Educação Física em 2020. — Não tenho nem cartão de crédito, não consigo fazer nada.

GERAÇÃO ENDIVIDADA

Para especialistas, o cenário brasileiro pode repetir o dos Estados Unidos, onde a chamada geração Y — nascida entre meados dos anos 1990 e começo do novo milênio — está afundada em dívidas exatamente por conta dos programas de crédito estudantil.

Dados do Banco Central americano apontam que 40% da população com nível superior nos EUA se debatem com algum tipo de empréstimo. O total devido já supera US$ 1,5 trilhão (R$ 5,86 trilhões).

Andrea Ramal, doutora em Educação pela PUC-Rio, acredita ser necessário um planejamento estratégico que promova uma relação mais direta dos cursos universitários com a inserção de quem usa o Fies no mercado de trabalho:

— Se a pessoa tem um posto de trabalho com possibilidade de crescimento, (o débito) não atrapalha. Ela sabe que, no fundo, tem uma dívida social. O que atrapalha é o desespero de contrair a dívida no Fies e não ter perspectiva futura alguma.

Para o diretor-executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), Sólon Caldas, a tempestade perfeita do Fies inclui a crise econômica, o corte de recursos e também as reestruturações feitas no fundo ao longo dos anos.

— Assim como o governo federal atua em situações de crise para “salvar” determinados grupos, como empresários e agricultores, por exemplo, ele precisa desenvolver mais políticas públicas de suporte aos estudantes que não estão em dia com o financiamento estudantil — diz.

* Estagiário, sob a supervisão de Marco Aurélio Canônico