Educação no Ceará

Por Samuel Pinusa, g1 CE


Pesquisa ouviu alunos do Grande Bom Jardim sobre problemas de segurança pública.

Pesquisa ouviu alunos do Grande Bom Jardim sobre problemas de segurança pública.

"As aulas foram paralisadas por conta de facções. Acho que isso não deveria acontecer justamente por ser uma escola, porque as pessoas estão lá para estudar". O relato de uma adolescente de 14 anos, que terá a identidade preservada, moradora do Bairro Bom Jardim, em Fortaleza é emblemático da realidade vivenciada por ela e muitos outros. Uma pesquisa feita na região do Grande Bom Jardim, com um público de 14 a 24 anos, mostrou as relações entre os problemas de segurança pública e a vida estudantil.

O Grande Bom Jardim é um território da periferia sudoeste de Fortaleza, formado por cinco bairros oficiais (Bom Jardim, Canindezinho, Granja Lisboa, Granja Portugal e Siqueira) e uma população estimada de 220 mil habitantes. Em termos populacionais, esse território representa 8,33% da população da capital.

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A pesquisa apontou que praticamente oito a cada dez participantes consideram o bairro como inseguro ou totalmente inseguro (78,67%), semelhante aos dados sobre a insegurança no percurso para a escola (68,61%) e na rua (63,17%). Os dados foram retirados de questionários aplicados a estudantes das 12 escolas de ensino médio da região; os alunos têm entre 14 e 24 anos.

Alunos entre 14 e 24 anos do Grande Bom Jardim foram ouvidos em pesquisa sobre segurança pública de Fortaleza. — Foto: Fabiane de Paula/SVM

A insegurança que viola as ruas, as casas, as escolas, retira até direitos básicos — como o de ir e vir. “A gente não podia sair de casa porque estava muito perigoso na rua. [O medo] era tanto de tiros da polícia, quanto tiros dos…”, declarou a estudante ouvida pelo g1, se referindo aos criminosos, incapaz de finalizar a frase.

A jovem pensa em seguir estudando no Grande Bom Jardim. Ela mora perto da escola onde estuda, e faz o caminho todos os dias de carro, levada por familiares. A pouca idade, no entanto, não a impede de entender a realidade social em que está inserida.

“Muitas pessoas entram nessa vida [crime] não por querer, mais por necessidade mesmo, mas é muito errado porque pessoas que não têm nada a ver acabam sendo afetadas por isso”, lamentou a adolescente.

A violência dentro da escola

Pesquisa feita no Grande Bom Jardim apontou como problemas de segurança pública afetam vida de estudantes da periferia de Fortaleza. — Foto: Fabiane de Paula/SVM

O g1 ouviu um professor de química que atuou durante dez anos em uma das escolas do Grande Bom Jardim — nesse período, cinco anos foram como diretor da unidade. Ele também terá a identidade preservada. O professor explicou que a escola onde ele lecionou fica localizada em um território de bastante disputa entre dois grupos criminosos.

"Quando havia algum tipo de atrito entre as facções, nossos alunos, que eram pessoas da comunidade, eram proibidos de estar dentro da escola. Sempre convivi com esse medo de que algo pudesse acontecer. Até que um dia aconteceu", lembrou o professor.

O ex-diretor disse que presenciou um episódio em que, durante uma prova no turno da noite, o namorado de uma aluna aguardava do lado de fora, na frente da escola. Então, alguém chegou para assassinar esse jovem, que buscou refúgio na unidade escolar.

"Ele entrou e faleceu na sala de aula. O professor [que estava na sala onde o jovem morreu] ficou traumatizado de uma forma que não conseguiu mais entrar em sala de aula; foi readaptado para trabalhar na biblioteca da escola", disse o ex-diretor.

Ex-diretor de escola do Grande Bom Jardim revelou episódios de violência na unidade. — Foto: Fabiane de Paula/SVM

O professor revelou, inclusive, que integrantes das facções criminosas da região conseguiram o telefone dele, e ligavam avisando sobre possíveis confrontos. "Um dia chegaram alguns para conversar comigo, eu tive que aceitar, estavam todos armados. Eles disseram 'a partir da semana que vem, a gente vai fechar a favela. Quando for 20h, a aula tem que terminar'", lembrou.

O ex-diretor disse que ainda tentou rebater, mas os criminosos foram irredutíveis. A única solução achada foi o uso do fardamento. O acordo informal entre direção da escola e facção determinou que os alunos fardados não poderiam sofrer nenhum tipo de represália.

"Até então, os alunos eram arredios com o uso da farda. Até o dia que eu cheguei na escola e falei 'o fardamento não vai mais ser obrigatório. Vai ser questão de sobrevivência'", declarou.

O mandado como diretor de escola pública no Ceará dura cinco anos, e o gestor pode ser reeleito para mais cinco. No entanto, o ex-diretor escolheu não seguir no cargo após mais um caso de violência presenciado. Em outra ocasião, um ex-aluno invadiu a unidade para tentar matar dois estudantes.

"Eu estava na minha sala [de diretor], quando um rapaz pulou o muro da escola para matar dois alunos — este rapaz tinha sido meu aluno. Ele ia matar uma menina de 15 anos que era mãe da filha dele e o rapaz que estava se relacionando com ela. Ele chegou a dar tiro dentro da escola", lembrou o docente.

Pesquisa

Pesquisa ouviu estudantes de 12 escolas de ensino médio do Grande Bom Jardim. — Foto: Fabiane de Paula/SVM

O estudo foi nomeado “Violências no Grande Bom Jardim sob a perspectiva de estudantes de escolas públicas de ensino médio: vitimização, percepções sobre segurança e repercussões educacionais”. A organização explicou que “a investigação faz parte de um conjunto de iniciativas para compreender, prevenir e enfrentar as dinâmicas psicossociais da violência em Fortaleza”.

Entre os órgãos responsáveis, está o Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (Vieses), vinculado à Universidade Federal do Ceará (UFC). Já a proposta da pesquisa veio a partir do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CCDHVS), que queria entender como a violência tem impactado nos estudantes do território.

"A pesquisa surgiu de uma demanda que emergiu do próprio território. As 12 escolas de ensino médio do Grande Bom Jardim já se articulam juntas há alguns anos para enfrentar as dificuldades que as dinâmicas da violência no território tem produzido", disse João Paulo Pereira Barros, professor do curso de Psicologia da UFC e coordenador do Vieses.

Pesquisador ressaltou que dados do levantamento devem ser usados para discutir melhorias para o Grande Bom Jardim. — Foto: Fabiane de Paula/SVM

"Nós unimos esforços para entender melhor essa realidade e subsidiar intervenções que possam enfrentar os efeitos que a violência tem produzido", comentou o coordenador acadêmico da pesquisa.

Além do Vieses e do CCDVHS, participaram o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), também ligado à UFC, e o programa Jovens Agentes de Paz (JAP), vinculado ao CDVHS.

"O Grande Bom Jardim, infelizmente, é marcado historicamente pela violação de direitos; o baixo IDH, o índice de violência maior que a média de outros locais da capital. Isso chama a atenção da gente", lamentou o professor universitário.

"Porém, o Bom Jardim não é só lugar de violências e violações. É também um lugar de muita organização para lutar contra essas opressões", avaliou o coordenador da pesquisa.

Estratégias públicas

Secretarias da Segurança e Educação do Ceará traçam estratégias para enfrentar problemas de violência. — Foto: Unidade de Arte/SVM

O g1 ouviu as secretarias estaduais da Segurança Pública e da Educação sobre as problemáticas apresentadas pela pesquisa e pelos entrevistados. Em nota, a pasta da segurança informou que a Divisão de Proteção ao Estudante (Dipre), da Polícia Civil realiza constantes palestras relacionadas ao combate às drogas, violência sexual, violência contra a mulher e bullying/ciberbullying.

Somente em maio de 2023, 1.191 estudantes de escolas situadas em bairros da região do Grande Bom Jardim participaram das formações. Essas palestras podem ser solicitadas pelas instituições de ensino pelos telefones (85) 3101-7416 e (85) 98973-1131.

Já a Polícia Militar estadual, por meio do Grupo de Segurança Escolar (GSE) do Comando de Prevenção e Apoio às Comunidades (Copac), atua na criação de vínculo, por meio de visitas continuadas, com as instituições, para prevenir ou mediar situações de desordem que possam afetar o rendimento do aprendizado.

Entre janeiro e o início de junho deste ano, 451 visitas foram realizadas nas escolas da região. As solicitações ao GSE podem ser feitas pelo (85) 98107-5804.

A Secretaria da Segurança ainda destacou uma parceria com a Secretaria da Educação (Seduc), que resultou na elaboração de uma cartilha com orientações para prevenção e combate à violência nas instituições de ensino. O material pode ser encontrado online.

Violência afeta a vida escolar de estudantes na periferia de Fortaleza. — Foto: Unidade de Arte/SVM

A Seduc, por sua vez, argumentou que a formação integral dos estudantes do ensino médio na rede pública estadual tem sido um dos princípios pedagógicos assumidos pela política educacional do órgão, que considera os aspectos cognitivos, psicomotores e socioemocionais como imprescindíveis ao sucesso do processo de ensino-aprendizagem.

O órgão disse que dispõe de psicólogos e assistentes sociais educacionais, lotados nas regionais na capital e no interior, que trabalham no fortalecimento da relação da escola com a família e a comunidade e estreitam contato com toda a rede de proteção social, de direitos da infância e adolescência, e de segurança.

A pasta estadual disse ainda estar implantando as Comissões de Proteção e Prevenção à Violência contra a Criança e o Adolescente em parceria com o Ministério Público — 98% das unidades contam com comissões, conforme a Seduc. O processo tem como finalidade reforçar o papel protetivo da escola e estreitar sua relação com a Rede de Proteção para fortalecer uma atuação protagonista da unidade de ensino.

Por fim, a Seduc informou que as comissões também foram criadas no âmbito das regionais. No momento, estão em alinhamento para auxiliar na elaboração dos planos de prevenção em cada escola, promovendo debates e formação continuada em direitos humanos nas suas várias dimensões; e que está em permanente promoção dos círculos de mediação e cultura de paz nas escolas.

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