Professoras suportam até 'lives' de xingamentos em escalada de violência em salas de aula

Docentes relatam tensão no exercício do magistério e querem ação rápida do estado para combater problemas que contribuem para clima de hostilidade como bullying e grupos extremistas nas redes sociais

Por Ludmilla de Lima — Rio


Professora de Curitiba que já foi ameaçada de morte por aluno Rodolfo Buhrer

Na Escola Estadual Ana Neire Marques, localizada na periferia de Manaus, uma professora de matemática ficou em choque ao descobrir que a aula era transmitida ao vivo por um ano numa rede social. Na gravação, há cerca de três semanas, o menino de 13 anos disparava xingamentos durante a “live” violenta pelo simples fato de não gostar da disciplina.

Trocas de ofensas, bullying, automutilação, crises de ansiedade, agressão física e até ameaça de morte. Esses são os sintomas da tensão crescente nas salas de aula país afora. Na última semana, Elizabeth Tenreiro, de 71 anos, que ensinava biologia no Colégio Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, foi assassinada por um aluno com uma facada nas costas.

A realidade de colégios, sobretudo da rede pública, dá medo e faz os professores adoecerem.

— Ele usava palavras muito baixas contra a professora. Tivemos todas que falar duramente com os alunos, durante as aulas, para mostrar que a internet não é terra de ninguém e que há limites a serem respeitados na escola — conta Vanessa Antunes, professora de História do ensino fundamental da unidade de Manaus, que enfrenta problemas mesmo tendo pedido ajuda a psicólogos da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), diante da falta de amparo do estado, após vários casos de automutilação entre alunos. —A pandemia fez aflorar os piores sentimentos. Eu mesma vi um aluno ter uma crise de ansiedade em sala de aula. O pai chegou arrancando o menino da escola. Tentei protegê-lo, e o homem me empurrou e ofendeu no meio da rua.

O estudante que tornou pública sua raiva contra a professora de matemática no Amazonas foi transferido. Lá, a Secretaria de Educação e Desporto diz que as escolas contam com rede de apoio e comunicação para monitorar publicações e ações suspeitas, além de patrulhamento policial na entrada e saída e acompanhamento socioemocional de estudantes. As respostas aos casos de violência, no entanto, são sempre desafiadoras e podem deixar traumas profundos.

Rotina de brigas

Professores dizem que o clima de guerra entre alunos ou contra os educadores ganha tração em fóruns de internet ou em plataformas que acobertam perfis que estimulam a violência. Uma professora de Geografia de uma escola estadual do bairro Boqueirão, em Curitiba, conta ter sido ameaçada de morte por um aluno de 17 anos. A causa? A cobrança de cumprimento de tarefas escolares. O caso foi parar na polícia, mas ela precisou retirar a queixa para que o aluno fosse transferido. Não bastasse isso, a mesma professora, que prefere não se identificar por medo, conta que já tinha sido alvo de gordofobia.

— Um aluno pegou uma foto Facebook e espalhou via WhatsApp. Meu filho, então com 16 anos, recebeu a imagem dizendo que eu parecia um bujão — lembra a professora, que sabe não caber nos dedos das mãos os conflitos pelos quais ela já passou ou testemunhou. — Com 1,55m, já me embolei com alunos para separar uma briga por causa de um menina. Depois, ficamos duas horas esperando a ronda escolar. A confusão foi filmada, e minha família ficou bem preocupada.

Um fenômeno observado em Curitiba preocupa ainda mais os profissionais de educação. Mesmo com a pandemia arrefecendo, muitos jovens não deixaram de usar as máscaras, que viraram o novo uniforme, assim como bonés, toucas, luvas e moletons escuros. Em fóruns na internet, grupos que incitam violência entre alunos costumam se vestir da mesma forma.

— Até hoje não vi o rosto de alguns alunos — conta a professora.

No Paraná, a Secretaria de Educação afirma investir em apoio psicológico a alunos com o programa Escola Escuta e a profissionais da educação, com o Bem Cuidar, que inclui um app de telessaúde. No último fim de semana, houve o primeiro Treinamento de Segurança Escolar Avançado. Cláudia Gruber, professora da rede do Paraná e secretária de Comunicação da APP Sindicato, conta que, na unidade onde dá aulas, recentemente uma aluna de religião de matriz africana virou alvo de intolerância de um grupo de alunos, deflagrando até agressão física.

— Em escolas públicas de regiões violentas, muitos levam para a sala de aula o que vivenciam fora dela. Mas isso nunca esteve tão latente. Vemos casos de racismo e até de xenofobia contra imigrantes haitianos e venezuelanos que vivem aqui. E os professores não estão preparados para lidar com isso de forma incisiva por se sentirem desprotegidos e acuados — analisa ela, destacando que as professoras são vítimas preferenciais pelo machismo e pela misoginia cada vez mais enraizados no meio digital.

Na rede estadual de São Paulo, pesquisa do Instituto Locomotiva com o Apeoesp mostrou que 68% dos professores enxergam como média ou alta a violência nas escolas e que 41% deles souberam de casos no último ano. O total de professores que dizem terem sido vítimas é de 19%. A maior parcela, de 12%, afirmou ter sofrido agressão verbal. A professora morta tinha apartado uma briga entre seu agressor e outro aluno a quem chamou de “macaco” dias antes do crime.

— A pesquisa mostra que a violência, em diferentes formas, infelizmente, não é exceção nas escolas públicas — conclui João Paulo de Resende Cunha, diretor de Pesquisa da Locomotiva. — Há os problemas estruturais crônicos da rede pública, mas 91% dos professores declararam que as questões de saúde mental se agravaram. Há uma demanda muito clara deles por mais acompanhamento, o que prova que as soluções vão muito além de policiamento.

Professora de alfabetização e de artes de uma escola estadual da região do Jabaquara, em São Paulo, Daniele Almeida diz que, devido ao medo diário no trabalho, precisou mais de uma vez tirar licença médica. Ela paga do próprio bolso o tratamento psicológico. Na sua escola, um dia após o ataque na Thomazia Montoro, uma menina levou uma bomba de festa na mochila.

— Crianças chegam aqui reproduzindo atos de violência; nos chutam, jogam objetos. E é normal as mães nos xingarem. Há dois anos, uma professora saiu escoltada porque uma mãe ameaçou bater nela. Estamos vulneráveis — diz Daniele, que já ouviu burburinhos de alunos com facas e se viu revistando mochila, por medo.

Professora de História numa escola estadual de Taquaritinga (SP), Mariana Milhossi lembra que, no ano passado, um aluno de 13 anos levou uma faca para o colégio porque foi rejeitado por uma menina pela qual se interessava. Outros alunos viram a arma e alertaram professores.

— No caso da nossa escola, havia um componente machista porque o aluno se sentia humilhado. Ele passou a ser atendido por uma psicóloga e está mais calmo. E, nós professores, que às vezes somos mais rígidos, mudamos o tratamento com ele — diz ela, destacando o esforço da unidade de ensino. — O aumento da agressividade é bem nítido. Acredito que tenha sido porque a desigualdade aumentou, assim como os discursos de ódio na internet. Tudo que dá errado na sociedade vai desembocar na escola.

A Secretaria estadual de Educação de São Paulo promete ampliar o programa Conviva para que cinco mil profissionais fiquem dedicados à aplicação das políticas de prevenção à violência nas unidades. Outra frente de ação é tornar presencial o atendimento psicológico, remoto até 2022, com a contratação de uma empresa para mais de 150 mil horas de atendimento de alunos e professores da rede.

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