As incertezas após interrupção no Novo Ensino Médio
As escolas buscam alternativas. A maior dúvida: qual o modelo do Enem?
Há tempos, um dos debates mais recorrentes e mercuriais na área da educação gira em torno dos rumos do ensino médio. Em 2017, depois de duas décadas de intensas discussões, algum consenso parecia ter sido criado, com a aprovação pelo governo do presidente Michel Temer de uma reforma que, a partir de 2022, flexibilizaria o currículo e permitiria aos alunos escolher itinerários formativos de acordo com suas áreas de interesse. Pela nova regra, o número de horas de aula anuais subiria de 2 400 horas para 3 000 horas ao longo dos três anos de formação. Desse total, 60% são destinados à formação básica obrigatória. Os 40% restantes estão abertos ao que se convencionou chamar de “parte flexível” — que pode ser montada, a título de exemplo, por temas como “matemáticas e suas tecnologias” e “linguagens e suas tecnologias”. Em pelo menos um caso de escola pública, porém, descobriu-se, no escaninho de humanas, a oferta de um curso de confecção de brigadeiros.
Apesar dos deslizes — qual o alcance de aulas para deixar um brigadeiro no ponto? — o modelo, positivo e inteligente, anda de mãos dadas com as maiores economias do mundo, de modo a tornar a escola mais conectada aos desafios da sociedade contemporânea. Na semana passada, contudo, deu-se uma freada abrupta. O ministro da Educação, Camilo Santana, do PT, cedeu parcialmente às pressões de entidades estudantis e partidos de esquerda — para os quais o sistema “aprofunda desigualdades” e é “fruto do golpe de Temer” — e interrompeu por sessenta dias o cronograma de implementação. Resultado: 7,5 milhões de estudantes brasileiros, professores e pais perdidos na incerteza, sem futuro tangível. “Sou da primeira turma do novo modelo e tenho receio de estar perdendo tempo com aulas extras, em vez de reforçar o conteúdo tradicional”, diz Enzo Hastenreiter, de 16 anos, aluno da rede pH, do Rio de Janeiro, que se prepara para prestar vestibular no ano que vem. A solução, diante do vaivém que já vinha se anunciando, foi a de cautela. “Optamos por adotar um modelo no qual os alunos têm eletivas comuns a todos nos dois primeiros anos e as aulas extras focadas na área de escolha no último ano. Diante das mudanças, vamos saber se faz sentido manter a estrutura”, afirma Filipe Couto, diretor pedagógico da pH.
Não haverá um cavalo de pau imposto pelo governo — e é evidente que a gestão de Jair Bolsonaro desdenhou da reforma, sem a devida atenção —, mas há uma outra certeza: o parêntese de agora é péssimo. O Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, é motivo das maiores aflições. O teste é um dos grandes balizadores dos currículos a ser trabalhados ao longo do período que antecede a faculdade. Até o momento, a proposta do MEC previa uma prova em duas etapas: a primeira comum a todos os candidatos e a segunda com questões relacionadas a quatro áreas de interesse. Com o adiamento das mudanças, ninguém sabe, ao certo, o que estudar. “Meu filho quer prestar medicina, o curso mais concorrido, e teme ser prejudicado”, diz Luzia Fujita, mãe de Victor, 15 anos, aluno do Colégio Ari de Sá, em Fortaleza. No Inep, órgão responsável pelo exame, os trabalhos foram paralisados. “Entramos em compasso de espera”, admite um servidor que prefere o anonimato. Para não prejudicar tanto os estudantes, alguns educadores defendem uma espécie de Enem de transição. “É possível elaborar um questionário de primeira fase integrando as quatro áreas básicas (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas) e oferecer duas opções para o aluno escolher na segunda etapa”, sugere Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep.
O que fazer? Na dúvida, os pedagogos têm levado o conteúdo tradicional para as disciplinas eletivas. “Optamos por não mexer tanto na formação geral básica porque não sabemos como ficará o Enem”, diz Wilton Ormundo, coordenador da Escola Móbile, em São Paulo. Assim, o anacrônico cenário dessa fase da aprendizagem, em que se ensina muito e se aprende pouco, situação que a reforma pretendia acabar, vai se perpetuando. Nas redes estaduais, o problema ganha outros contornos. “Há relatos de professores que estão tendo que assumir disciplinas que não dominam só para atender à reforma”, diz Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP.
Apesar da confusão, há bons motivos para apostar numa correção de rumo. A insistência em um modelo de aula antigo, com professor dando aula na lousa e o aluno assistindo a tudo, passivamente na carteira, é apontada pelos especialistas como um dos principais fatores para a evasão escolar no ensino médio — só em 2021, 420 000 alunos desistiram de estudar. “Os ajustes são necessários, mas a suspensão da reforma no meio do ano letivo e sua eventual revogação representam imenso retrocesso”, diz Vitor de Angelo, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação, o Consed. “Infelizmente a questão virou política e não pedagógica, sinônimo de insegurança no meio acadêmico”, reforça Bruno Eizerik, presidente da Federação Nacional de Escolas Particulares (Fenep), que ameaça ingressar na Justiça se o impasse persistir. Mais do que nunca é preciso encontrar uma solução técnica, desapaixonada e sem ideologia para o problema criado. Os jovens brasileiros não merecem se perder em discussões infrutíferas — eles querem crescer.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837