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Brasil

Artigo: Paulo Freire e a neurociência

Na sua genialidade, o educador anteviu a necessidade de dotar a educação tradicional, formal e unilateral da época de uma interatividade entre alunos e professores
Paulo Freire não foi um neurocientista, é claro. Mas a sua genialidade criou conceitos que hoje são utilizados pela neurociência. Foto: Reprodução
Paulo Freire não foi um neurocientista, é claro. Mas a sua genialidade criou conceitos que hoje são utilizados pela neurociência. Foto: Reprodução

Os grandes pensadores compartilham uma característica comum: baseiam-se nas ideias e métodos disponíveis, mas alcançam conclusões e proposições com impacto bem além do seu tempo. Foi assim com Darwin , que não dispunha da genética para bater o martelo sobre a evolução, e com Ramón y Cajal, que viu no neurônio a unidade estrutural do cérebro muito antes do microscópio eletrônico.

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O mesmo vale para Paulo Freire. Um dos conceitos mais relevantes de seu pensamento é o de educação dialógica, pelo qual defendia uma troca recíproca entre professores e alunos. O professor exercita o diálogo, ouve o aluno e não apenas transmite a ele um “saber” exclusivo de que dispõe. O aluno também ensina ao professor.

Pois bem. Esse conceito de interação recíproca, biunívoca, entre os atores do processo de ensino-aprendizagem, tem sido utilizado pela neurociência contemporânea. A ideia é que os cérebros interagem, influenciam-se, ensinam-se, aprendem-se. E o que a neurociência busca é como reconhecer os marcadores cerebrais desse processo dialógico.

A estratégia utilizada é conhecida como hiperescaneamento, que significa registrar simultaneamente a atividade cerebral de várias pessoas durante atividades interativas entre si. Atualmente, isso pode ser feito com o exame clássico dos neurologistas, o eletroencefalograma, que capta por meio de eletrodos posicionados na cabeça, a atividade elétrica dos neurônios em ação durante atividades escolares. Um grupo de pesquisadores americanos e alemães publicou em 2017 um estudo desse tipo com 12 alunos de ensino médio, e constatou maior sincronia cerebral (= engajamento, atenção compartilhada) quando os alunos interagiam frente-a-frente entre si e com o professor.

No Brasil, o grupo de pesquisa liderado por João Ricardo Sato e Guilherme Brockington, na Universidade Federal do ABC, divulgou ano passado um estudo empregando outro recurso técnico, de nome complicado mas execução fácil: espectroscopia funcional de infravermelho próximo. Nesse caso, o que se capta do cérebro dos participantes é o fluxo sanguíneo local das regiões cerebrais mais ativas, por meio da passagem de uma radiação infravermelha parcialmente absorvida pela hemoglobina do tecido cerebral. Quanto maior a atividade dos neurônios, maior o fluxo sanguíneo circulante na região, detectado pelos sensores.

Os resultados foram animadores. Em um dos experimentos, uma criança de 4-5 anos utilizava um jogo, junto com sua professora, para aprender a somar números inteiros. Ambas interagiam intensamente, enquanto os pesquisadores registravam os momentos de sincronia da atividade cerebral das duas, que apareciam no registro do computador. O estudo foi uma prova de conceito, ainda preliminar, mas demonstrou vários momentos em que o mesmo “clique” acontecia no cérebro da aluna e no da professora. Terão sido esses os momentos de aprendizagem? Ainda não sabemos. Mas os experimentos de hiperescaneamento cerebral têm florescido em vários grupos de pesquisa, empregando diferentes desenhos experimentais.

Paulo Freire não pensou nesses termos, é óbvio, mas na sua genialidade anteviu a necessidade de dotar a educação tradicional, formal e unilateral da época, de uma conotação dialógica, de interatividade entre alunos e professores, e alunos entre si. O trágico é que ainda não nos convencemos disso: na maioria das escolas e universidades, o protocolo é conservador. Um professor à frente da lousa deitando falação, e alunos passivos sentados em filas, pensando sabe-se lá em quê.

*Roberto Lent é professor emérito da UFRJ e pesquisador do Instituto D’Or