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Celina

Artigo: 'Boicotar a juventude trans não a fará desaparecer'

Se de um lado tanta gente vem tomando coragem para se assumir e se fazer conhecer, de outro os conservadores nos EUA veem essa visibilidade como afronta ao ponto de proporem projetos de lei que, segundo sua expectativa, façam as pessoas transgêneros sumir
Nos EUA, conservadores apresentam projetos de lei que proibem intervenções médicas precoces em jovens trans, ideia que contraria pesquisas endossadas pela Sociedade de Endocrinologia e pela Academia Norte-Americana de Pediatria Foto: NYT
Nos EUA, conservadores apresentam projetos de lei que proibem intervenções médicas precoces em jovens trans, ideia que contraria pesquisas endossadas pela Sociedade de Endocrinologia e pela Academia Norte-Americana de Pediatria Foto: NYT

NOVA YORK. O garoto me encarou com um misto de confusão e espanto. Isso foi em uma loja da Gap, em Freeport, no Maine, há 20 anos, eu me esforçando ao máximo para não chamar a atenção. "Manhê, o que é aquilo?", gritou ele para a mãe, olhando para mim e para minha peruca sem graça. "Aquilo, querido, é um ser humano", ela respondeu.

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Os transgêneros fazem parte da história da humanidade desde que há história e humanidade, mas, com a exceção de alguns mais corajosos, até relativamente pouco tempo atrás raramente eram vistos em público nos EUA. Sabia-se tão pouco a nosso respeito que, quando saí do armário, na virada do milênio, pelo menos uma pessoa para quem tentei me explicar achou que eu estava inventando a coisa toda ali na hora.

Pensando bem, minha transição em 2000 foi um pouco mais fácil porque não havia tantas leis visando dificultar minha vida. Os conservadores pareciam ainda não ter entendido que deviam nos odiar.

Mais de duas décadas depois, as coisas estão melhores e piores: se de um lado tanta gente vem tomando coragem para se assumir e se fazer conhecer, de outro os conservadores sociais do país veem essa visibilidade como afronta. Até que ponto? Até o ponto de proporem projetos de lei que, segundo sua expectativa, nos façam desaparecer do mapa. Até meados de março, 82 tinham sido apresentados nas Câmaras Estaduais este ano, desde o Maine até Montana.

Em 25 de março, o governador do Arkansas, Asa Hutchinson, sancionou o Projeto do Senado 354, que impede as meninas trans de participar da prática de esportes de acordo com sua identidade de gênero. O mesmo estado se tornou o primeiro nos Estados Unidos a proibir qualquer assistência médica e/ou psicológica de validação de gênero para menores de idade trans. Os parlamentares revogaram o veto baixado por Hutchinson.

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Hutchinson tentou justificar a medida que veta os tratamentos dizendo que a lei "estava indo longe demais". Alegou que seria "intromissão" do governo em uma questão complicada de saúde, afirmando que a proposta era o "produto de uma guerra cultural no país".

Acontece que essa ingerência é obra de seu partido, o Republicano. Os conservadores compraram essa briga na contramão de pesquisas endossadas pela Sociedade de Endocrinologia e pela Academia Norte-Americana de Pediatria — sem falar da própria experiência dos profissionais do país —, mostrando que intervenções médicas precoces, incluindo a prescrição de remédios bloqueadores de puberdade para jovens trans, são benéficas e seguras.

Hutchinson foi instado a vetar a legislação por pediatras, assistentes sociais e pais de crianças trans. Os criadores do projeto que criminaliza o acompanhamento médico o chamaram de Lei "Salve os Adolescentes de Experimentações", (Safe, na sigla em inglês), título cuidadosamente escolhido para fazer o público pensar que o tratamento da garotada trans é coisa saída da ficção científica.

Mas os procedimentos vetados por essa lei não são nem radicais nem experimentais; são baseados em medicamentos que impedem que o jovem trans sofra os danos permanentes da adolescência no gênero errado. Já foi provado que diminuem o risco de pensamentos suicidas e dão tempo ao paciente, se necessário for, de reforçar a certeza no caminho que quer trilhar. Uma vez suspenso o tratamento, os efeitos são reversíveis.

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Um dos responsáveis pela legislatura disse à KATV que o instrumento "dá aos jovens a chance de crescer e, se tomarem uma decisão diferente quando mais velhos, tudo bem". Só que, quando forem mais velhos, os efeitos da adolescência já terão se estabelecido — seios e menstruação para os homens trans, pelo facial e voz grossa para as mulheres trans. Nesse caso, a opção de acompanhamento para a juventude trans não é o experimento, mas sim impossibilitar essa garotada de ser o que realmente é.

Em 2014, um artigo na publicação da Academia Norte-Americana de Pediatria abordou o estudo longitudinal com 55 transgêneros que se submeteram a tratamento com supressão de puberdade e viram a vida melhorar radicalmente. A análise concluiu que, anos depois da readequação sexual, "seu nível de bem-estar era semelhante ou melhor do que o dos jovens adultos de mesma idade na população em geral, dando-lhes a oportunidade de se transformar em adultos funcionais".

Além disso, uma análise diferente contida na mesma publicação no ano passado mostrou que o jovem que passa por tratamento precoce enfrenta riscos significativamente menores de automutilação, depressão e tentativas de suicídio. Em outras palavras, não é o tratamento, mas a falta dele, que põe a vida dessa garotada em perigo.

Perdoem-me por não conseguir acreditar que a série de proposições de projetos de lei é motivada pela preocupação sincera dos conservadores americanos com o atletismo feminino, com o entendimento sutil da endocrinologia ou mesmo com o bem-estar dos próprios jovens; para mim, ela não passa de uma forma de demonstrarem seu desprezo por aqueles que são diferentes de si mesmos.

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É claro que esse tipo de atitude não faz com que os trans desapareçam; no fim das contas, a única coisa que consegue é demonstrar falta de generosidade e imaginação para compreender uma alma alternativa.

Fico imaginando se os autores e defensores desses projetos de lei já pararam para pensar quem são esses estranhos — quem eles parecem fazer tanta questão de prejudicar. Pois, meus queridos, são seres humanos.

* Jennifer Finney Boylan é professora de inglês no Barnard College e escreve para a coluna de Opinião do "The New York Times". Seu livro mais recente é "Good Boy: My Life in Seven Dogs", ainda sem tradução no Brasil.