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Aproximação entre escola e ambiente familiar pode ser herança positiva da pandemia, diz educadora

Na educação infantil, atividades devem instigar pequenos alunos a darem respostas complexas sobre o que eles pensam do mundo, explica especialista

Por Ocimara Balmant e Alex Gomes
Atualização:

Era uma vez um País em que a educação infantil era vista como assistencialismo. As creches eram ligadas às secretarias de assistência social e atuavam como equipamentos para ajudar às mães que trabalhavam fora e não tinham com quem deixar as crianças. Foi em 1996, há apenas 25 anos, que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LGDB) surgiu como o primeiro texto legal a reconhecer essa etapa como integrante da formação. E bem mais recentemente, em 2013, a educação infantil para crianças de 4 e 5 anos se tornou obrigatória.

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Mas que educação é essa? De um lado, em muitas unidades persiste o caráter assistencialista – crianças são cuidadas enquanto os pais trabalham. De outro, há escolas que se orgulham de alfabetizar aos 4 anos e da tabuada decorada aos 5. Nem uma nem outra vão bem. O caminho a ser seguido está na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da educação infantil, documento com os direitos de aprendizagem das criança que deve nortear a educação de todas, independentemente da sua localização ou classe social. 

“Temos de avaliar: há uma educação em que a criança é protagonista, incentivada a dar respostas complexas sobre as coisas que ela pensa do mundo, ou apenas é incentivada a dar respostas curtas, dizer sim ou não?”, indaga Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. “Não existirá qualidade na educação infantil sem olhar esse contexto complexo de atividades. Se a criança está motivada e engajada, o papel da criança como sujeito investigador demonstra a qualidade do que é oferecido na educação infantil.”

Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal Foto: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

Nesta entrevista, Beatriz aborda a BNCC e outros temas relacionados à educação infantil, como o uso de tecnologia, o papel da família e a formação de professores. Confira a seguir: 

Qual o grande diferencial da BNCC da educação infantil?

Antes tínhamos outros documentos orientadores das práticas pedagógicas, mas nenhum tinha tantos detalhes sobre os direitos de aprendizagem das crianças brasileiras. A BNCC traz os objetivos de desenvolvimento que todas as crianças devem atingir. Tudo em um modelo curricular de ponta. Fizemos um estudo com a Fundação Carlos Chagas, no qual analisamos políticas públicas em 12 países, e vimos como nossa BNCC contempla as concepções mais avançadas. São práticas pedagógicas centradas na criança, em que ela age e é ouvida. Tudo de forma costurada com a intencionalidade pedagógica do professor. Ele não age sozinho, mas em um ambiente com situações mediadas. É um modelo de organização curricular com base no campo e na experiência, não em disciplinas e matérias. Afinal, a criança aprende por meio de vivências, que integram várias habilidades e áreas do conhecimento. 

E como está, de fato, a implementação da BNCC na educação infantil?

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Após o lançamento, o desafio foi a construção dos documentos curriculares locais. Isso se daria em 2020, porém com a pandemia as coisas ficaram complicadas. De qualquer forma, vemos um esforço dos municípios em continuar o processo de implementação, tanto no sentido de promover formações continuadas para os profissionais com base na BNCC como nas práticas pedagógicas. Há duas semanas realizamos uma premiação que reconheceu o trabalho de cem professores de educação infantil na pandemia, com a premissa de estarem alinhados a concepções da BNCC. O resultado foi surpreendente. Os professores se reinventaram sem deixar de lado as concepções pedagógicas. Foi um esforço de superação desses profissionais no período.

Falando em pandemia, o atendimento remoto instigou um maior engajamento das famílias? Que estratégias a escola deve usar para que isso não se perca?

Em 2020, as famílias atuaram como uma ponte entre a escola e a criança. Temos levantamentos que mostram que, antes da pandemia, a participação das famílias era superficial ou mesmo não acontecia. Escola e ambiente familiar eram universos separados. No caso de famílias vulneráveis, o processo é bastante prejudicado, mas percebemos um esforço para que também aconteça. O caminho é estabelecer uma comunicação de via dupla. A escola envia atividades e propõe projetos que sejam feitos pela criança no ambiente familiar: a instituição conversa com os pais ou responsáveis sobre como se dá a atividade, o que é importante estimular e proporcionar para as crianças. De forma inversa, há professores que procuram conversar com as crianças sobre o cotidiano delas em casa, trazendo a rotina delas para a escola. Ver a realidade dos alunos é algo que emociona os educadores, treinados para oportunidades de aprendizado de forma planejada e intencional. Essa aproximação é extremamente positiva para as famílias, a escola e as crianças, e precisa ser mantida. 

Outra herança da pandemia é o uso da tecnologia. Se ainda era tímido nas escolas, agora entrou de vez, até na educação infantil. Quais são os desafios?

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Quanto ao uso de telas, há recomendações contundentes de associações de pediatras para que crianças com menos de 2 anos não usem telas. Para aquelas entre 2 e 5 anos, a recomendação é de no máximo uma hora por dia. Sabemos, porém, que as famílias tiveram dificuldade de lidar com essa situação na pandemia, e a escola teve e pode ter um papel importante, orientando as famílias em relação às rotinas em casa, com atividades a serem feitas, a organização dos momentos. Vimos que os professores investiram em atividades nas quais as crianças interagem com seus familiares. Não é adequado que fiquem sozinhas interagindo com a tela, pois isso resulta em uma atividade passiva. A criança precisa de uma postura ativa, ser protagonista do processo de aprendizagem. O mais importante no desenvolvimento da criança é que ela tenha oportunidades de fazer descobertas, de brincar. O processo está muito mais atrelado a experiências com contextos significativos do que simplesmente a algo acontecendo em frente a uma tela.

Avaliar crianças não é aplicar provas. Que indicadores e conceitos ajudaram a dar um norte à educação infantil?

É preciso ver o que está sendo ofertado no cotidiano da educação infantil, uma avaliação que passa pelos insumos, infraestrutura, materiais disponíveis para os professores, formações continuadas aos educadores etc. Temos de avaliar: há uma educação em que a criança é protagonista, incentivada a dar respostas complexas sobre as coisas que ela pensa do mundo, ou apenas é incentivada a dar respostas curtas, dizer sim ou não? A professora de alguma maneira associa temas, atividades e projetos ao contexto de vida das crianças? São questões importantes para tornar tais atividades significativas. Não existirá qualidade na educação infantil sem olhar esse contexto complexo de atividades. Se a criança está motivada e engajada, seu papel como sujeito investigador demonstra a qualidade do que é oferecido na educação infantil. 

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Qualidade da educação infantil não é exigir que uma criança de 5 anos saiba ler. Como educar os pais para que essa não seja uma régua de medir qualidade?

Há uma valorização muito grande da alfabetização. Realmente, é um recurso primordial na aprendizagem da criança, porém não é papel da educação infantil a completa alfabetização. A cultura escrita pode ser trabalhada, com a introdução de elementos que despertem a curiosidade por letras, leitura e literatura. Faz parte do planejamento do professor trabalhar com hipóteses de escrita, por exemplo, o nome da criança. Isso fortalece a identidade, ela pode descobrir e escrever algo que tem significado e contexto para ela. Para acalmar as famílias, a escola pode ampliar o olhar dos pais sobre a aprendizagem das crianças. Muitas vezes, a família acha que a criança tem de produzir, ter trabalhinhos para medir a aprendizagem. É importante documentar as narrativas das crianças e mostrar aos pais, mas a aprendizagem vai muito além. Um exemplo: a criança pode fazer a leitura espontânea de algo que chamou a atenção. Isso não pode ser registrado se não por meio do olhar observador do professor.

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Por muito tempo, a educação infantil foi vista como uma área menor e com menos ofertas de programas de formação continuada de docentes. Como você vê esse cenário? Estamos melhorando?

A formação continuada abarca muitos tipos de prática: cursos de especialização, assistir palestras, formação na escola. Mas, de forma geral, vemos que as formações que mais afetam o trabalho dos professores são as que acontecem dentro da escola, envolvendo ações como as discussões com os coordenadores pedagógicos e as trocas entre educadores. Por isso temos de investir em escolas com continuidades de aprendizagem. Mas também sabemos que há escolas em que a equipe gestora não conta com um coordenador pedagógico para organizar espaços de formação nas escolas. Além disso, nas redes públicas, os professores têm a vantagem do horário garantido de formação na escola. Muitas vezes, nas conveniadas e nas particulares, essas formações ocorrem em outros horários, como em momentos em que o educador está sozinho em casa.

Pesquisas mostram que o investimento na educação infantil é o que mais influencia no futuro da criança e da sociedade. Crianças que fizeram pré-escola têm rendimentos maiores na vida adulta e menos chance de praticar crimes. Como divulgar esse direito da criança?

Temos uma legislação que é assertiva sobre a valorização da educação infantil, que é tratada como obrigatória. Isso traz um novo olhar para esse ensino. A sociedade brasileira diz: “Sim, as crianças devem estar em ambientes educativos e institucionais porque vai fazer uma diferença muito grande na vida posterior”. Mas nem todos sabem disso, que é um direito da criança e obrigação das famílias. Assim, acho que todos: sociedade, terceiro setor, academia, poderes Legislativo, Executivo, Judiciário… temos a obrigação de espalhar essa notícia. Também incentivar que os municípios responsáveis pela educação infantil tenham processos de busca ativa para crianças fora da escola. Deve haver uma mobilização da sociedade para entender os direitos da criança.

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