NOTÍCIA

Edição 279

A evolução e ressignificação da aprendizagem digital

Jovens que cresceram no começo da transformação digital continuam a redefinir constantemente o uso das tecnologias, com a visão de quem já percorreu um longo curso de mudanças, resistências e inovações

Publicado em 09/11/2021

por Redação revista Educação

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Por Vanderlei Cardoso*: Na escola estadual Sales Gomes, em Tatuí, SP, o aluno do ensino médio Eliel Constantino, descobriu, no então recém-lançado YouTube um material que resolvia as dificuldades de seus colegas com geometria espacial. “Era um problema com pirâmide; lembro até hoje”, conta. Entusiasmado, indagou o professor de matemática sobre o uso de novas ferramentas e teve a má sorte de se deparar com um ‘negacionista’. “Vai se graduar em matemática e vem aqui fazer melhor”, respondeu o professor. Dito e feito. Constantino é mestre em educação matemática e atua na formação de professores.

Seu primeiro contato com um computador foi em 2001, pouco após sua alfabetização, quando a irmã mais velha começou um curso de espanhol. “Era daquelas máquinas com um monitor que ocupava toda a mesa, que levava 10 minutos para ligar”, lembra. O pai nunca tinha mexido em um computador, mas era formado no EAD que existia antes, em um curso técnico por correspondência. Afinal, na escola em Tarumã, SP, uma cidade de 8 mil habitantes, só chegou computador na escola municipal em 2003, quando tinha nove anos. “Eram dois alunos por máquina e nem se podia ligar sem a supervisão do professor.”


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Em 2007, quando tinha se mudado para Cerquilho, usava a conexão de internet da lan house para acessar Orkut, MSN e salvar as pesquisas escolares em um pen drive. “Internet em casa, só com 16 anos, no segundo ano do ensino médio”, conta. Aquela “máquina branca” (como a família saudosamente se refere), de 2001, teve a sobrevida esticada até 2009.

Na casa de Rafaela Lima, mestre em biologia e professora de escolas estaduais e privadas no Rio de Janeiro, o computador chegou também em 2001, com internet discada, por dificuldades técnicas e financeiras de ter banda larga na comunidade da Maré. Ao mesmo tempo que dava um jeito de acessar Orkut e MSN, as febres daquela geração, desenvolveu habilidade digital que começou a aplicar logo no início de sua carreira no magistério, no final da década.

“Em 2010, já procurava usar os recursos nas aulas expositivas. Mesmo em escolas particulares, o acesso à internet era limitado para os alunos. Em 2007, chegou a haver lei que proibia uso de celular na escola. Só em 2019 consegui levar a internet para dentro da sala de aula, com um modem no notebook”, descreve.

Quando ingressou na rede pública, teve a ideia de disponibilizar resumos das aulas em vídeo, para atender aos alunos que perdiam aula. O objetivo inicial se frustrou pela dificuldade de consumo de vídeo, por limitações nos planos de dados. “Na escola pública, 70% têm celular, mas alguns esperam a mãe chegar do trabalho para usar o aparelho com crédito”, constata. Contudo, o canal Mais Ciência, criado em 2015, ganhou alcance nacional, hoje tem 170 mil inscritos e desde 2017 é monetizado. “A pandemia trouxe um boom no canal. Os próprios professores começaram a usar mais. No YouTube, grande parte dos acessos a vídeos educacionais é gerada por links no Google Classroom ou no Google Docs”, menciona.

Embora as segmentações etárias classifiquem os professores nas gerações Y e Z (com meados da década de 90 como marco), ambos cresceram aprendendo a usar a tecnologia disponível em seu próprio processo de aprendizado. Quando Rafaela Lima nasceu, usar um caixa eletrônico ainda era novidade e só havia PCs em grandes companhias. Apesar da pouca diferença de idade, Eliel Constantino conheceu um cenário diferente. A reserva de mercado tinha acabado dois anos antes de ele nascer. O câmbio, junto a políticas setoriais, começavam a popularizar a “informática”.

Em 1997, o programa ProInfo iniciava a distribuição de cerca de 150 mil computadores às escolas públicas, A internet era incipiente, até porque dependia de telefone fixo, que, por sua vez, era acessível a menos de 10% da população.

Daniela Costa – coordenadora da pesquisa TIC Educação

A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) só contabiliza a penetração de computadores a partir de 2001, quando estava em 12,23% dos domicílios. A TIC Educação é realizada pelo Cetic.br desde 2010, inicialmente com foco em computadores e conectividade. “Começamos a medir o uso de plataformas só em 2013 e não dimensionamos ondas como o MSN e o Orkut”, menciona Daniela Costa, doutora em educação e coordenadora da pesquisa.

Junto a toda a jornada de evolução da indústria em computadores, velocidade de acesso, sobretudo a mobilidade e nuvem, as redes sociais mudaram o jogo em meados da primeira década do século. Em 2007, o Brasil representava a maior base mundial de usuários do Orkut e a segunda do MSN. O MySpace tinha 3% do mercado, seguido da brasileira Via6, e o Facebook apenas 1%, segundo o Ibope/NetRatings. Entre as edições de 2013 e 2019 da TIC Educação, o Facebook tinha 79% em 2013 (entre alunos e professores com conta) e 62% em 2019. O WhatsApp era usado por 20% em 2014; 79% em 2015; e 85% em 2019. Em 2014, 6% usavam o WhatsApp para trabalhos escolares e 61% em 2019, e o Facebook vai de 11% a 30% na mesma comparação.

Tecnologia nas salas e nos pátios, com mobilidade, redes sociais, internet e nuvem

De acordo com uma estimativa da Accenture, feita em 2018, US$ 11,5 trilhões podem ser adicionados ao PIB global até 2028 se os países conseguirem preparar melhor os alunos para as necessidades da economia futura. “Sistemas desatualizados limitam o acesso às habilidades necessárias para impulsionar as economias e representam risco à produtividade”, advertia o Fórum Econômico Mundial, no estudo Escolas do futuro, definindo novos modelos de educação para a 4a Revolução Industrial, publicado em janeiro de 2020.

Cientes desta transformação desde o início da era da informação digital, tanto os agentes econômicos quanto os educadores tinham suas estratégias, com acertos e erros, para formar pessoas com habilidades tecnológicas. Até que surgiram aplicações, modelos comerciais e mudanças de cultura que balancearam o direcionamento das inovações e estabeleceram novos protagonistas.

No início do século, a filha do diretor de tecnologia de uma companhia de saneamento pediu para usar o MSN no escritório do pai enquanto o esperava. “Aqui é bloqueado”, disse o engenheiro, logo depois, a menina de 11 anos, lhe informou sobre um site que ensinava a contornar, embora estivesse perplexa por não ver nenhum sentido no bloqueio, já que o pai às vezes ligava para casa do telefone fixo da empresa. Devido à sua inclusão, privilegiada e precoce, ela representava a primeira geração em que a conexão digital fazia parte do cotidiano.

Professora Rafaela Lima – Canal no YouTube Mais Ciência

“Durante a pandemia, as redes sociais foram uma salvação. As lives mantêm a conexão entre alunos e professores, quando têm condições de acessar. O WhatsApp funciona com acesso ruim e tem sido o jeito de manter a comunicação”, exemplifica Rafaela Lima.


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Além das aplicações de mensagens e redes sociais, os buscadores, as wikis e blogs já criavam, na prática, novos hábitos de aprendizado. Em 2006, chega o YouTube e abre caminho para novos hábitos de ensino, com muitos professores na home do site. “Os canais de maior sucesso são diferentes das aulas tradicionais. É preciso aproveitar os recursos digitais na medida certa e criar um estilo atraente aos alunos”, diz Constantino.

No ambiente escolar, Emílio Loures, diretor para assuntos de responsabilidade corporativa da Intel, destaca a disseminação de redes Wi-fi, também em meados da década. “A conectividade na escola era um ponto crítico. Com o acesso móvel, o computador saía do laboratório e ia para a sala de aula” lembra. Portanto, conforme a TIC Educação, em 2020, 68% do total de escolas possuíam acesso à rede na sala de aula e 51% disponibilizavam acesso para os alunos.

“Tão importante quanto melhorar a conectividade nas escolas é a distribuição do acesso a professores e alunos”, enfatiza Tomas Fuchs, diretor do Grupo Datora e cofundador do Instituto Escola Conectada, ONG constituída em março por ISPs (provedores regionais de serviços de internet) para fornecer conexão de alta velocidade a escolas públicas.

Logo após a primeira implementação, em Miracema, RJ, uma aplicação imediata de EAD (ensino a distância, que, paradoxalmente, às vezes aparece como tradução de e-learning) já resolveu uma limitação  – um professor contraiu covid e deu aulas virtuais para alunos presencialmente na escola.

A infraestrutura de acesso continua prioritária, o que justifica inclusive a iniciativa do Escola Conectada. Em relação à infraestrutura de computação, Fuchs lembra de outra grande transformação, com a computação em nuvem. Entretanto, além de eliminar o desgaste com servidores, instalação de software e outros contratempos inevitáveis há pouco mais de 10 anos, as aplicações em nuvem trouxeram outra grande transformação: o uso e o aprendizado no mesmo movimento. “Em meados da década de 90, a Datora tinha cursos de Windows e aplicativos. No início um público de jovens e crianças e chegamos a trabalhar em escolas, a principio mantivemos a oferta de cursos, mas 20 anos depois praticamente todos os alunos eram idosos”, menciona.

Além disso, no que se refere aos dispositivos, a popularização dos smartphones Android foi outro marco do uso da tecnologia no processo educacional. Conforme a TIC Educação 2019, 98% dos usuários acessam internet pelo celular e outros dispositivos e 18% exclusivamente pelo celular, desta forma, a parte mais produtiva dessa massificação é a facilidade de incorporar vídeos e outras formas de captura de informação nas atividades escolares.

Em contrapartida, a falta de dispositivos de “tela grande”, que já dificulta até assistir a uma aula, limita a experiência de produção de textos. “Vlogs, podcasts e até memes podem ter uma linguagem próxima à fala dos jovens, mas não usam a linguagem cotidiana. Há um objetivo deliberado, um desencadeamento de ideias e um cuidado maior com a sintaxe e o léxico. É texto”, esclarece Cristiana Mori, linguista e consultora pedagógica do Instituto Singularidades.

Daniela Costa, do Cetic.Br, observa que os “laboratórios de informática” vinham se esvaziando. Em 2015, 58% das escolas públicas tinham e em 2017 eram 36%, por outro lado, em 2019, voltam a 54%. “Mas hoje é outro tipo de uso. São ambientes que ficam disponíveis para pesquisa, edição e outras iniciativas”, pondera.

As demandas de aprendizado dos novos “nativos digitais”

Os efeitos da pandemia no trabalho, na continuidade dos serviços e, evidentemente, na educação teriam sido ainda piores se não houvesse uma transformação em curso e acelerada na década passada. A TIC Educação 2020 revela que em 88% das escolas particulares e 86% das estaduais há algum uso de plataformas de videoconferência, além disso, antes da pandemia apenas 21% das escolas ofertavam conteúdos e atividades para os alunos na modalidade online.

Contudo, em relação a soluções mais estruturadas, com plataformas específicas para a atividade escolar, a TIC Educação passou a medir o uso de ambientes virtuais de aprendizado em 2016, quando era encontrado em 22% das escolas urbanas, o que passou para 28% em 2019 e 66% em 2020. “A evolução dos ambientes virtuais de aprendizagem começou a ocorrer para valer em 2019”, avalia Rafaela Lima.

Tomas Fuchs – Instituto Escola Conectada – “Tão importante quanto melhorar a conectividade nas escolas é a distribuição do acesso a professores e alunos”

Conforme a pesquisa Volta às aulas pós-pandemia, realizada entre maio e junho de 2020 pelo Instituto Crescer, 33% dos entrevistados vislumbram um modelo semipresencial com rodízio de alunos, índice que chega a 47% entre as escolas privadas. Mesmo com as incertezas que predominava naquele momento, para 55%, e havia previsões apocalípticas nos dois extremos: 7,2% acreditavam que tudo voltaria a ser como antes e 8,6% apostavam no trabalho exclusivamente online.

Mesmo com as incertezas, 61% reconhecem que a pandemia foi propulsora de modelos remotos que tendem a se desdobrar. “As possibilidades experimentadas no novo ambiente não vão deixar de existir”, constata Luciana Allan, diretora técnica do Instituto Crescer.

“Se o professor insistir em segregar o presencial e o online, e deixar de ver a atividade escolar e o aprendizado digital de forma integrada, a tecnologia é só adorno”, afirma Eliel Constantino. Ele esclarece que o papel tradicional das aulas expositivas e conceituais, permanece importante, mas agora pode ser inserido em contextos mais ricos.

“Em 2020, estimulei a criação de um portfólio virtual com aplicações práticas de matrizes em várias áreas, como biologia e engenharia, para dar sentido ao conteúdo da grade. O aluno hoje demanda menos a informação do professor, porque procura um vídeo ou pergunta aos colegas. Então faço ele mesmo produzir um vídeo, um artigo ou um post, para sistematizar e compartilhar o conhecimento”, exemplifica.

Portanto, sem sugerir nenhum retorno aos laboratórios e cursos de informática dos anos 90, com ensino focado nas ferramentas, Emílio Loures, da Intel, adverte que tecnologia também se aprende na escola. E questiona o jargão dos nativos digitais.

“Se a exposição à tecnologia capacitasse por si só, não teríamos deficiência exatamente nesse setor. Uma coisa é navegar com alguma familiaridade, mas entender a lógica e ter capacidade de análise vai além da tecnologia. Sistema educacional é fundamental para lidar com fake news, ética social e privacidade”, argumenta. “Entender os algoritmos, as aplicações e seus desdobramentos é saber como o mundo funciona”, acrescenta.

“A digitalização é um caminho sem volta. Como e para quem é que ainda não se sabe”, reconhece a coordenadora da TIC Educação.

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