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Após cruzada ideológica, Fundação Palmares vai retirar metade do seu acervo

Presidente da Fundação, Sérgio Camargo diz que obras são pautadas pela 'sexualização de crianças', 'bandidolatria' e 'material de estudo das revoluções marxistas' e que apenas 5% dos 9 mil títulos de seu acervo 'cumprem a missão institucional' do órgão
Capa do relatório que aponta 'doutrinação marxista'na Fundação Palmares Foto: Reprodução
Capa do relatório que aponta 'doutrinação marxista'na Fundação Palmares Foto: Reprodução

Após uma cruzada contra obras marxistas e comunistas, a Fundação Palmares irá retirar de seu acervo mais da metade das suas obras. Um relatório publicado nesta quinta-feira (11) detalha o trabalho de uma comissão que considerou que 5.300 livros, folhetos ou catálogos são de temática alheia ao escopo do órgão. A maior parte deles, afirmam os autores, de caráter panfletário e com evidências do que chamam de dominação marxista da entidade. De acordo com a análise do grupo, apenas 478 obras estão dentro do cunho pedagógico, educacional e cultural dentro da missão institucional da Fundação.

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Na apresentação do relatório, o atual presidente da Fundação, Sérgio Camargo, afirma que as obras são "pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha". “Bandidos”, de Eric Hobsbawm, foi uma das obras excluídas por ter, como frase central, o lema “Banditismo é liberdade”.

Com 74 páginas, o relatório foi elaborado pela equipe de Marco Frenette, ex-assessor de Roberto Alvim, demitido do cargo de secretário da Cultura por apologia ao nazismo , que em março foi nomeado coordenador-chefe do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra. Ao GLOBO, Frenette afirmou que o norte da análise foi a lei que criou a Fundação e o seu regimento interno. Criada em 1988, a Fundação Palmares tem como função promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.

— Tudo o que for alheio à temática negra será retirado, sem filtro ideológico. Nosso norte é a lei federal que gerou a Fundação e o Regimento interno que deriva dessa lei — diz Frenette, por mensagem.

Apesar de negar filtro ideológico, o relatório produzido pelo CNIRC tem como título subtítulo "A dominação marxista na Fundação Cultural Palmares" e classifica algumas obras como "Técnicas de Vitimização", como charges que ironizam a negação do racismo no Brasil e criticam o trabalho das polícias no Brasil. O relatório afirma, entre outros itens, que o acervo da Palmares "não cumpre sua missão institucional"; usa o negro como "massa de manobra"; e "não forma pessoas devotadas ao trabalho, ao crescimento pessoal e ao respeito ao próximo, mas militantes e revolucionários".

Os 9.565 títulos que compõem a biblioteca da Palmares (incluindo 1.530 folhetos e catálogos),  estariam divididos, segundo a avaliação da equipe de Frenette, em 46% de "temática negra" (4.400) e 54% de "temática alheia à negra" (5.165). Destes 46%, o relatório avalia que apenas 478 títulos têm "cunho pedagógico, educacional e cultural dentro da missão institucional". O restante estaria dividido entre "catálogos, panfletos e folhetos" e obras de "militância política explícita ou divulgação marxista, usando a temática negra como pretexto" (28%, ou 2.678 títulos).  Entre os 54% das obras consideradas de "temática alheia à negra" o documento destaca  temas como "ideologia de gênero", "manuais de greve", "bandidolatria" e "bizarrias".

Fernando Baldraia, historiador e editor de diversidade da Companhia das Letras, afirma que o uso recorrente da expressão "temática negra" no relatório" já denuncia um "erro crasso": pensar o negro como um "outro" que influencia apenas externamente a formação da sociedade brasileira, mas que não a constitui. Segundo ele, qualquer obra (seja ela influenciada pelo marxismo, pelo feminismo ou por qualquer outra teoria) que pense a formação das sociedades humanas pode "promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes no contexto social do país", como determina o regimento da Palmares.

— A "questão negra" trata de um problema eminentemente social, da constituição da sociedade brasileira (e mundial) e não de uma “temática” que possa ser circunscrita por qualquer termo, como "raça", "racial", "negro" ou "afrodescendente"— afirma Baldraia. —  Enquanto o negro for "tema/temática", seremos postos em caixinhas (ou acervos) — explica.

Marisa Midori, professora do Departamento de Jornalismo e Editoração da Universidade de São Paulo, afirma que expurgo da Palmares tem caráter autoritário e visa apagar a história de parte do movimento negro brasileiro, que manteve um diálogo profícuo com o marxismo.

— A questão do negro do Brasil vai da história, da sociologia e da literatura, ao folclore e ao hip hop. A biblioteca da Fundação Palmares deve abranger tudo que vai de Clóvis Moura (sociólogo marxista) ao slam. — afirma Midori. — Dizer que tais e tais livros deseducam ou que estão desatualizados é uma falácia e uma maneira autoritária de agir. Seria possível construir uma biblioteca que poderia, sim, abrigar obras que agradam à atual administração, ao mesmo tempo em que preserva sua própria história.

Para o historiador Marco Antonio Villa, o expurgo na Palmares é só o capítulo cultural do "genocídio" que o bolsonarismo está promovendo no Brasil. Um livro de Villa, "Franciso 'Pancho' Villa: uma liderança da vertente camponesa da Revolução Mexicana", será excluído do acervo.

— Só falta queimarem os livros e os autores — diz Villa. — Esse expurgo é parte do genocídio cultural que visa eliminar toda e qualquer leitura que nãos seja simpática ao nazifascismo bolsonarista.

Exclusão de livros antigos

O relatório critica ainda a própria escolha de Oliveira Silveira (1941-2009), poeta e militante do Movimento Negro de Porto Alegre, para batizar a biblioteca da instituição. "A escolha desse militante negro para nomear ações da Palmares (...) e seu próprio acervo, indica claramente a predominância de uma mentalidade voltada para a manutenção de um gueto marxista".

Na seção denominada "Desserviço à cultura", o relatório condena obras publicadas antes do Acordo Ortográfico de 2009: "Hoje, quem desejar ler na Palmares, por exemplo, 'Papéis avulsos', de Machado de Assis, encontrará uma edição de 1938, a qual prestará um desserviço ao estudante brasileiro, pois ele aprenderá a escrever 'chronica' em vez de crônica; 'Hespanha' em vez de Espanha; e 'annos' em vez de anos".

— Quem busca um livro numa biblioteca, precisa ser, necessariamente, alfabetizado. Não se aprende a escrever com a leitura de livros. Estes o conduzem a conviver com o conhecimento e a desenvolver capacidade crítica — destaca o imortal Domício Proença Filho, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras. — Excluir livros anteriores ao Acordo Ortográfico é um grave equívoco. A medida, se aplicada, por exemplo, à Biblioteca Nacional, excluiria a maioria do seu riquíssimo acervo.

O relatório é encerrado com uma lista de 300 títulos "comprobatórios do desvio da missão institucional da Fundação Palmares". Uma das publicações é "Menino brinca de boneca?", livro do pedagogo Marcos Ribeiro, cuja primeira edição foi publicada em 1990. Voltada para crianças entre 7 e 10 anos, a obra propõe uma educação igualitária para meninos e meninas, livre de estereótipos e discriminações. Durante a semana, Camargo postou uma foto segurando a publicação, que caracterizou como "apologia da ideologia de gênero", termo muito difundido entre grupos conservadores.

— É um livro lançado há mais de 30 anos, que já foi adotado pelo governo federal e pelas secretarias de Educação de vários estados. Ele apenas propõe uma relação de igualdade entre homens e mulheres, sem que haja submissão de um ao outro — destaca Marcos Ribeiro. — O título questiona os estereótipos com que nos deparamos desde a infância, como "menina não joga futebol". No caso dos meninos, brincar de boneca está relacionado ao cuidado, que pode prepará-los inclusive para se tornarem melhores pais.

Ribeiro lamenta a retirada do livro junto com as demais obras do acervo da Palmares e discorda de uma das premissas da seleção, de que as obras não estariam relacionadas à finalidade da instituição, de promover e preservar a cultura negra e afro-brasileira no país.

— Um dos pontos fundamentais da educação é a interdisciplinaridade, a troca entre diferentes culturas e saberes. É saudável que os livros estimulem os debates junto às famílias, que podem inclusive discordar do seu conteúdo. Excluir publicações é uma forma de impedir a circulação do conhecimento e de cercear o debate.

O relatório afirma que as publicações expurgadas não serão destruídas e que permanecerão armazenadas "de forma adequada e em ambiente protegido, aguardando os procedimentos de doação". Em seu texto de apresentação, Sérgio Camargo promete ainda a construção de um Centro de Estudos Negros (CEN), com conteúdos para a "promoção da cultura negra", "sem vitimismos, militâncias e segregações".

Presidente da Palmares entre 2013 e 2015, o ator e diretor Hilton Cobra diz se lembrar da ida de estudantes e pesquisadores à biblioteca da instituição, e lamenta a perda de parte da coleção.

— Não quero ser pautado por esse governo, até porque, se o Sérgio sai, o Bolsonaro arruma outro pior. Mas agora não são só besteiras na internet. Metade do acervo vai embora, isso não dá para recuperar — critica Cobra. — E se eles não conseguem entender a importância destes livros para a Palmares, saibam que foram outros pretos que constituíram esse acervo. É preciso respeitar.