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Inovações em Educação

Ao ignorar diferenças, escola exclui estudantes trans

Especialistas consideram que há uma expulsão de estudantes trans quando a escola não dá a devida atenção às demandas de gênero

por Ruam Oliveira ilustração relógio 3 de fevereiro de 2022

Quanto mais avançava nas séries, menos Arthur gostava da escola. Ele, que é um homem trans, hoje com 21 anos, não tem boas lembranças dessa fase. E, sim, por uma questão de gênero.

Ele conviveu com bullying, com piadinhas soltas pelos colegas. E, apesar de estudar em uma escola aparentemente mais aberta ao diálogo, onde era possível realizar debates sociais e ser um espaço para pessoas LGBTQIA + se sentirem mais confortáveis, Arthur entende que não havia estrutura de acolhimento para pessoas como ele. Ou seja, pessoas trans.

Em uma rápida definição, pessoas trans são aquelas que não se reconhecem com o sexo biológico que lhes foi designado ao nascer. Esse processo pode acontecer já na infância, como também na adolescência ou até mesmo na fase adulta. E cada pessoa tem um tempo de descoberta dessa identidade.


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No caso de Arthur, foi no terceiro ano do ensino médio que ele contou para a escola inteira que era uma pessoa trans. E aconteceu depois de perceber que seu pai, à época professor nesta mesma escola, poderia saber por meio de outras pessoas.

Intolerância de gênero

A realidade da população trans no Brasil é difícil. De acordo com o “Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021“, 140 pessoas trans foram assassinadas somente no ano passado. O país é recordista mundial em crimes desse tipo.

E no cenário educacional, a situação também não melhora. Apesar de poucos dados disponíveis, as pesquisas existentes revelam um alto índice de evasão escolar. De acordo com levantamento feito pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% das pessoas trans deixam o ensino médio entre 14 e 18 anos. A pesquisa é de 2017.

Arthur, no entanto, nunca pensou em desistir das aulas. “Eu sofria bastante, mas também estava muito dedicado a escapar, a fugir [das estatísticas]. Mesmo passando pelas crises a respeito de minha identidade e toda a confusão, eu estava muito consciente do que pessoas trans passavam quando o assunto era evasão escolar ou oportunidades”, diz.

Eu sofria bastante, mas também estava muito dedicado a escapar, a fugir [das estatísticas]

Por mais difícil que pudesse parecer, ele conta que o jeito possível para “escapar” seria concluindo os estudos. “Eu não pensava em sair da escola, pensava em concluir, terminar o ensino médio e procurar uma faculdade que eu soubesse que seria acolhido, e realmente construir um futuro fora do que os dados e as pesquisas diziam sobre pessoas trans”.

Ambiente escolar

A temática sobre gênero já circula no ambiente escolar. Desde as separações na fila entre meninos e meninas à determinação sobre quais esportes os meninos jogam e quais as meninas não jogam. Somente para citar dois exemplos, mas eles são muitos.

A professora Vanessa Leite, pesquisadora associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, órgão ligado ao Instituto de Medicina Social da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em entrevista ao Porvir, destaca que, justamente por já estarem na escola, é que essas temáticas devem ser abordadas.

“Quando a gente pensa o gênero, um ponto preocupante é a enorme força de normas e convenções sociais que excluem e maltratam, de certa forma, as pessoas que não cumprem o que é esperado para o gênero que lhes foi atribuído quando elas nasceram”, comenta.

Para ela, o mais importante é definir uma postura de escuta, respeito e acolhimento por parte da gestão, de educadores e educadoras. “Entendendo que essas temáticas já estão no dia a dia das relações entre os jovens, nas relações dos jovens com os profissionais da escola, todo mundo precisa estar com a escuta aberta, atenta a esse cotidiano da escola, mas também, promover espaços específicos, de formação e também de debate”, reforça Vanessa.

Ter espaços formativos acaba sendo uma das melhores estratégias para aperfeiçoar a relação da escola com as pessoas trans. Jaqueline Gomes de Jesus, professora de psicologia do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro) e da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), ressalta que não adianta discutir gênero e sexualidade sem conhecer de fato a vida e histórias de pessoas trans.

A postura ideal é se informar, é informar quem que está na escola, é conhecer para poder estar não numa lógica de acolhimento, mas de convivência

“A postura ideal é se informar, é informar quem que está na escola, é conhecer para poder estar não numa lógica de acolhimento, mas de convivência. Porque o objetivo tem que ser convivência para que haja de fato uma possibilidade de valorização e que, dessa convivência, chegue-se ao processo que nós objetivamos que é a inclusão”, diz.

Sobre os índices de evasão, Jaqueline comenta  que não são as pessoas trans que evadem, mas sim são expulsas do ambiente escolar. Para ela, a impossibilidade de expressar o gênero com o qual se designam faz com que crianças, adolescentes e jovens deixem de estudar.

Garantia de direitos 

A psicóloga afirma que discutir gênero sem ter uma convivência real é deixar de cumprir com a função básica de garantia de direitos. “Qualquer outra ideia de acolher sem conviver é falsa. É uma projeção de uma possibilidade. Não adianta a gente só falar de diversidade se as pessoas não convivem. E essa escuta não vai ocorrer se essas pessoas não estiverem abertas para ouvirem em todos os lugares da escola”, pontua.

Sobre a formação e materiais disponíveis para trabalhar o assunto, a Jaqueline  comenta que existem diversos conteúdos disponíveis para uso. “Não falta informação, o que falta é interesse em abordar o tema. Na prática, para além de simplesmente usar o conteúdo, o que impede geralmente escolas de incluírem a temática no currículo é não quererem falar daquilo que está no dia a dia da escola”, afirma. “A escola está falando e vivendo a todo momento questões ligadas a gênero e sexualidade, e quando não fala ela se torna um palco de manutenção das lógicas de opressão, das lógicas de machismo, da cultura do estupro, da LGBTfobia, das masculinidades tóxicas”.

Na prática, para além de simplesmente usar o conteúdo, o que impede geralmente escolas de incluírem a temática no currículo é não quererem falar daquilo que está no dia a dia da escola

Depois que Arthur se entendeu como uma pessoa trans, alguns colegas que antes faziam bullying vieram pedir desculpas. Ele entende que não havia um espaço de escuta e acolhimento naquele momento, mas seu posicionamento e sua própria presença tiveram um impacto importante na comunidade.

Quando chegou o momento da formatura, aqueles que antes o tratavam mal perguntaram se ele gostaria de ser incluído na lista dos que usariam smoking, e não vestido. Uma atitude simbólica, mas que representou muito.


TAGS

diversidade, educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, socioemocionais

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