Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Anne Frank e o sexo

Exploração midiática do caso da Escola Móbile fere a tarefa educativa

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Lembro do caso de uma adolescente grávida que ao entrar em trabalho de parto perguntou para a mãe por onde o bebê sairia, uma vez que só havia visto mulheres chegando em casa com seus filhos nos braços.

Ao ouvir que eles “saem por onde entraram”, e sentindo as primeiras contrações, a jovem teve uma crise de pânico. Casos como esses revelam omissões gritantes em acolher os questionamentos de jovens sobre a sexualidade a ponto de ficarem completamente despreparados diante da vida.

Mas não precisamos ir tão longe, fantasias ligadas à masturbação ou excitações em situações inesperadas continuam a gerar medo, confusão e culpa. Está aí, para comprová-lo, o querido Jairo Bouer, psiquiatra que responde há décadas perguntas sobre sexualidade que se revelam tão ingênuas quanto repetitivas.

Na versão sem cortes de “O Diário de Anne Frank”, a jovem quer saber como um homem pode entrar por um buraco tão pequeno quanto a vagina, que mal acomoda seu dedo indicador. Ótima pergunta, que qualquer menina minimamente atenta a seu corpo se fará um dia. Com sorte ela terá um adulto confiável o suficiente para lhe responder ou ainda, para lhe perguntar qual sua preocupação.

O enorme constrangimento diante das questões trazidas pelas crianças revela como os adultos se embananam com a própria sexualidade. Daí a necessidade de tapar o sol com a peneira e criar uma aura de pureza na infância. Mas afinal, o que haveria de impuro em dar nomes aos órgão sexuais ou explorar o próprio corpo? É o que fazemos desde o berço, degustando mãos e pés assim que conseguimos levá-los à boca. Sim, a mal afamada sexualidade está lá desde sempre, já explicava Freud em “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, em 1905.

Mas, vejamos o imbróglio no caso da Escola Móbile, que gerou burburinho. Escolas são lugares para reflexão, propícios para o enfrentamento de questões. Se houver alguma indicação inadequada de texto ou algum conflito entre alunos e professores, é prerrogativa da escola encontrar meios para enfrentar a situação. Havendo questões dos pais e responsáveis, estes devem se dirigir à coordenação e exprimir suas preocupações.

Noventa pais mandaram uma carta para a direção da Escola Móbile pedindo a versão anterior do livro de Anne Frank por compreenderem que a versão sem cortes —aprovada pela Fundação Anne Frank e adotada pela Unicef— seria inapropriada por conter falas sobre a sexualidade da jovem.

Bom tema a ser debatido, cuja oportunidade parece ter sido perdida. O que vimos foi a exploração midiática do caso, que acabou expondo professores e alunos, que se dizia querer proteger.

Algumas questões poderiam ter sido levantadas: por que é mais constrangedor falar de vaginas e desejos do que de nazismo e campo de concentração? Por que as crianças não podem perguntar e comentar sobre o tema do corpo, do prazer, do consentimento, e das normas sociais envolvidas? Qual o medo de enfrentar situações constrangedoras? Com ou sem acesso à imagens sexuais —disseminadas hoje em dia— essas são questões próprias de qualquer púbere.

Espero que a comunidade de ensino da Escola Móbile —pais, crianças e professores— possa reverter o estrago que a midiatização do acontecimento causou em suas relações de confiança e trabalho.

Quanto à opinião da autodeclarada antifeminista Pietra Bertolazzi sobre a “pornografia” encontrada em “O Diário de Anne Frank”, não podemos levá-la em conta. Antifeministas não conquistaram o direito ao voto.

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