Brasil Conte algo que não sei

Andrea Bellingall, psicóloga especializada em educação infantil: "O tablet é a chupeta desta geração"

Carioca, viveu dois anos na Inglaterra, onde começou a trabalhar no ensino das crianças; para ela, o uso excessivo de tecnologia prejudica o desenvolvimento
"Já tive crianças que, em vez de virar a página do livro de história, ficavam apertando, como se fosse tablet. Não sabiam manusear o livro", conta a psicóloga Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
"Já tive crianças que, em vez de virar a página do livro de história, ficavam apertando, como se fosse tablet. Não sabiam manusear o livro", conta a psicóloga Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

"Comecei a dar aulas de inglês para crianças, me encantei com esse universo e resolvi fazer psicologia. Há 20 anos, trabalho na área de educação e, como estou sempre em contato com os pais e com as famílias, vejo a transformação ao longo desses anos todos. Mudou muita coisa, mas vejo 2017 muito melhor que 1980."

Conte algo que não sei.

Uma pesquisa com crianças de 3 a 5 anos mostrou que 66% delas conseguiam lidar com jogos de computador, 47% eram capazes de usar os smartphones, mas só 14% sabiam amarrar o próprio sapato. A criança precisa crescer, primeiro ser criança, se tornar forte emocionalmente, para depois dominar um computador. Se ela não sabe amarrar o próprio sapato, como vai dominar uma máquina? Isso é uma realidade séria.

Houve uma mudança de prioridades?

Acho que as pessoas aproveitam o momento tecnológico que estamos vivendo, que é de transformação, para fazer com que ele pareça algo totalmente positivo. Pode ser positivo em alguns aspectos, mas não em todos. Temos que tomar cuidado. Temos que ver como a tecnologia está sendo usada, para qual finalidade. Nessa fase da infância, é importante a socialização, a interação.

Qual o reflexo disso nas futuras gerações?

As crianças estão se acostumando a ter as coisas muito prontas e de maneira rápida. Isso gera crianças pouco tolerantes. Não estão usando a capacidade que têm de pensamento e criação, por conta do uso excessivo da tecnologia. Freud fala no princípio do prazer versus o da realidade. Quando somos pequenos, vivemos só no princípio do prazer, queremos tudo naquele momento, e, depois, aprendemos que a vida não é assim. Estamos formando crianças que só querem o princípio do prazer. Não aceitam o não. Isso está ligado à tecnologia, que dá tudo muito fácil.

A maneira como os pais lidam com a tecnologia pode influenciar o mau uso por parte dos filhos?

Hoje, o tablet é a chupeta desta geração e o smartphone é o novo cigarro dos adultos. Se o adulto fica sem celular, ele pira. E a criança, infelizmente, está indo pelo mesmo caminho. É moeda de troca: “Eu te dou o tablet para você ficar quieto”. As tecnologias estão interferindo muito no desenvolvimento da criança. Por isso, acho completamente desnecessário levar a tecnologia para o ambiente escolar. É um espaço onde as crianças trabalharão habilidades como correr, pular, jogar bola. As crianças, hoje em dia, não estão sabendo perder, porque, no jogo eletrônico, se perdem, elas começam de novo.

Privar as crianças do contato com a tecnologia não é colocá-las à parte da realidade?

Acho que dentro da escola não há necessidade desse contato. De 0 a 2 anos não vejo a menor necessidade, porque a criança não tem essa demanda. A partir de 2 anos pode-se até mostrar o caminho, trazer coisas pedagógicas ricas para o universo da criança. É importante deixar que a escola seja um espaço onde a criança brinque. Eu sei que, em casa, ela vai ter a tecnologia, diferentemente de 20 anos atrás. Acho que pode-se introduzir a tecnologia, mas não dentro da escola.

Mas a escola não deve ter o papel de ensinar as crianças a usar esses recursos de maneira saudável?

Fala-se sobre a importância de não ficar o tempo todo na frente do computador. Não precisamos trazer o jogo eletrônico para sala de aula. Já tive crianças que, em vez de virar a página do livro de história, ficavam apertando, como se fosse tablet. Não sabiam manusear o livro. O mundo está muito tecnológico, então vamos mostrar para a criança uma coisa diferente.