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Opinião

Alvo escola: do discurso às vias de fato

É preciso coibir atos de violência e discursos de ódio, mas se fazem necessárias, sobretudo, políticas de longo prazo voltadas à promoção da cultura da paz com presença também nos currículos escolares

Comunidade realiza vigília na creche em Blumenau (SC) em homenagem às crianças mortas. Créditos: ANDERSON COELHO / AFP
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Por José Isaías Venera*

Uma anedota contada pelo filósofo Slavoj Žižek espelha o nosso problema. Um oficial alemão, na Segunda Guerra Mundial, ao ver a obra Guernica no estúdio de Picasso em Paris, pergunta: “Foi você quem fez isto?”. Então, Picasso responde: “Não, foram vocês que fizeram isto! Este é o verdadeiro resultado da sua política!”. Se fosse possível criar uma imagem das recentes tragédias nas escolas, ela apenas expressaria o desastre que foi a política do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Os ataques a escolas no Brasil vêm como efeito dessa política, ao mesmo tempo que realizam o desejo de Bolsonaro. Seu projeto armamentista inspirado nos Estados Unidos dependeria do aumento da violência para se efetivar. Quanto mais violência, mais armas. O caminho foi aberto cultivando a cultura do ódio, ancorada sobretudo na produção estratégica de fake news, via pela qual se conduz a passagem do discurso ao ato. O sinal mais claro do que se realizaria ocorreu na campanha eleitoral de 2018, quando Bolsonaro, sobre um palanque em Rio Branco, Acre, pegou o tripé de uma câmera de televisão para fazer de metralhadora e gritou: “Vamo fuzilar a petralhada aqui do Acre!”.

Ao longo dos quatro anos de governo, o discurso de ódio foi o carro-chefe para mobilizar a militância. Um crime aqui, outro ali, como o assassinato do petista Marcelo Arruda, no Paraná, evidenciavam a passagem do discurso ao ato. Os crimes não foram classificados como políticos. Precisou-se sair do controle — errar o alvo — para o país entrar em choque. Pânico geral. Nossa Guernica começou a encher as telas país afora.

O sinal vem de todos os lados

Um acontecimento trivial foi interpretado como um novo ataque em uma escola estadual no nordeste de Santa Catarina. Após fortes ventos, na tarde do dia 19 de abril, uma sucessão de barulhos fortes foi apontada como tiros de armas de fogo por alunos e professores da Escola Gustavo Augusto Gonzaga, em Joinville. Gritos, alunos pulando pelas janelas, ligações para os pais, a polícia foi acionada. Não demorou muito, a causa, trivial, foi descoberta. Eram apenas objetos que caíram com os ventos fortes unindo-se ao barulho de uma construção próxima à escola.

Esse acontecimento indica algumas questões. De um lado, a cultura do ódio promovida pelo governo passado contribuiu para a generalização da violência tendo como alvo principal as escolas. De outro lado, os ataques com mortes criaram pânico generalizado, retroalimentando a cultura armamentista. 

Pânico é um afeto

O pânico é um afeto que advém de um perigo com que nos encontramos sem recursos para enfrentá-lo. Na Escola Gonzaga, os sons ouvidos como tiros afetaram os corpos: mudança do batimento cardíaco, respiração ofegante, desorientação. Somente depois de um tempo, descoberta a causa, o imaginário, que organiza a realidade, foi restabelecido.

Em 1926, Sigmund Freud articulou a definição de trauma com a noção de perigo real, em que o sujeito se vê sem recurso diante de situação que causa pânico. Por isso, o pânico é um afeto, mas Freud nomeou-o de angústia. Outra nomeação possível é a de mal-estar na cultura. Viver em grupo passa pelo reconhecimento de que minha existência depende do outro. Quando o outro passa a significar ameaça em vez de proteção, vivenciamos o mal-estar do ser.

A escola, sobretudo a pública, é a instituição que melhor representa esse espírito gregário, de transmissão dos valores coletivos e de emancipação diante das forças de dominação e empobrecimento das práticas de liberdade. As paixões tristes, como cólera, raiva, pânico, são desagregadoras; já as paixões alegres, como amparo, amor, felicidade, são agregadoras. Como efeito subjetivo, as paixões tristes causam desamparo, e as alegres resultam em amparo. Talvez esse seja um dos motivos – a função de amparo – pelos quais a escola é alvo, e não somente de atentados como os recentes, mas sobretudo de discursos de políticos e influenciadores que disseminam conteúdos de ódio pelas mídias digitais. 

Do pânico do ser ao amparo do outro

Com o cenário de ataques a instituições de ensino, entre eles o ocorrido em 27 de março na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, e em 5 de abril no Centro de Educação Infantil Cantinho do Bom Pastor, Blumenau (SC), a presença do Estado por intermédio de políticas públicas voltadas à cultura da paz é o melhor enfrentamento para conter situações de pânico diante de ameaças recorrentes.

As ameaças espalham-se como ervas daninhas na cultura digital. O dia 20 de abril tornou-se uma data catalisadora de ameaças e, consequentemente, causadora de pânico generalizado. A data ficou conhecida como o Massacre de Columbine, quando, em 1999, 12 alunos e um professor na Columbine High School foram mortos. Outra relação é com o dia de nascimento de Adolf Hitler, em 1889. Se, no primeiro caso, em Columbine, os motivos dos atentados ainda são incertos, no segundo, a referência a Hitler aponta para o desejo de extermínio daqueles classificados como impuros, assim como o fim das instituições que promoveriam, na visão nazifascista, a degeneração dos valores morais. Atitudes extremistas de ódio pelo diferente são alimentadas pelas referências a personagens da história que colocaram em ato os desejos mais cruéis. Em síntese, as escolas passaram a ser o principal alvo.

Como mitigar o pânico?

O estímulo armamentista como saída individual para se proteger ou mesmo a presença ostensiva da polícia civil nas escolas funcionam como signos de um perigo sempre presente, colaborando para situações de pânico coletivo. Qualquer sinal inesperado passa a ser associado a um possível ataque, como ocorreu na Escola Gonzaga. Um objeto que cai leva ao medo presente e transforma-se em pânico. Para manter o medo à flor da pele, os sinais não podem sair de vista. A farda, a arma, a viatura, mesmo que na chave invertida (estão para proteger), são indiciamentos de um perigo que pode terminar em tragédia. Aqui cabe o raciocínio mais simples: ódio gera mais ódio; violência gera mais violência; sinal de ameaça gera pânico. Ações mais ostensivas, mesmo que inicialmente pareçam inevitáveis, não podem ser referência para uma política de longo prazo.

O Estado precisa funcionar na biopolítica — na política voltada à vida, sem exceções. A promoção da vida mediante as instituições, além de coletivos e movimentos sociais, interpela o sujeito como garantidor de uma sociedade mais civilizada. Quanto mais políticas de amparo o Estado cria, maior é a sensação de segurança que as pessoas experimentam.

Depois de quatro anos de desamparo político, de discursos de ódio promovidos pelo ex-presidente e seus apoiadores e de ataques a instituições democráticas, a conta veio com o sangue dos filhos do país.

É preciso coibir atos de violência e discursos de ódio, mas se fazem necessárias, sobretudo, políticas de longo prazo voltadas à promoção da cultura da paz com presença também nos currículos escolares. O respeito às diferenças culturais, de gênero, identitárias, étnicas; a problematização das questões de classe social; a importância de políticas voltadas às minorias são temas urgentes para os processos de subjetivação que potencializam a vida democrática. Cultura da paz significa, principalmente, desenvolver ações que resultem em mudanças na subjetividade das pessoas, desencadeando maior empatia pelo outro. 

*José Isaías Venera é dirigente do Sinpro Itajaí e Região e professor do PPGE da Univille

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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