Rio
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Por Rodrigo de Souza

Ele não ligava para o que diziam os papéis. Já na primeira infância, brincava de se chamar Tiago. Em 2020, quando tinha 9 anos, o desejo rompeu os limites da fantasia: o menino preencheu com o nome que queria para si nas etiquetas de livros, cadernos e da agenda escolar. A família, que acolheu o pedido com alegria, pensou que Tiago, aluno da rede municipal do Rio de Janeiro, não teria problemas no colégio. O que sua mãe relatou ter ouvido na sala da direção, porém, deixou-a estarrecida.

— A diretora me disse que a Coordenadoria Regional de Educação (CRE) não tinha autorizado o uso do nome social e que isso só mudaria com a apresentação de uma ordem judicial. Ela ainda comparou o caso do Tiago a uma criança que acreditava ser o Batman e contou: “Um dia ela descobriu que não podia ser o Batman”. Fico arrepiada até hoje — diz a mãe de Tiago, que preferiu preservar o anonimato dela e o do filho e não identificar a escola envolvida.

Tiago não está só. Anos após a publicação das primeiras normas que afirmam o respeito à identidade de gênero na educação básica, crianças e adolescentes trans e não binárie ainda lutam para fazer valer o direito de serem chamados pelo seu nome de fato, que em muitos casos difere daquele que consta na certidão de nascimento.

Para tentar contornar o impasse, a direção do colégio de Tiago propôs que os professores e alunos passassem a chamá-lo pelo sobrenome. Uma saída cômoda para as instituições que resistem ao nome social, a qual os responsáveis, por falta de alternativas, muitas vezes acabam por aceitar. Foi o caso da mãe de Tiago, até ele sofrer bullying de colegas durante a chamada.

Lucas Dourado (direita) sofreu transfobia diante da turma. Sua mãe, Maria Tereza, trocou-o de escola — Foto: Guito Moreto/Agência O Globo
Lucas Dourado (direita) sofreu transfobia diante da turma. Sua mãe, Maria Tereza, trocou-o de escola — Foto: Guito Moreto/Agência O Globo

O menino, então, bateu o pé: queria ser chamado de Tiago. O problema foi resolvido, conta a mãe, quando a família buscou soluções fora dos muros da escola, com contatos na Secretaria municipal de Educação (SME).

— Tenho noção de que fomos privilegiados. Não é todo mundo que tem essa chance — diz ela.

Um caso por semana

Em 2018, uma resolução do Ministério da Educação (MEC) determinou que estudantes trans sempre devem ser chamados pelo nome social nas instituições de ensino, independentemente de terem ou não realizado a chamada requalificação civil — a adequação dos documentos oficiais à identidade manifesta pelo estudante. O texto garante esse direito também aos alunos menores de idade, mediante a autorização dos pais.

A Secretaria estadual de Educação do Rio (Seeduc), responsável pela maioria das turmas de ensino médio do estado, viabilizou o uso do nome social em sua rede em 2016. Atualmente, a pasta contabiliza 224 alunos que fazem uso do nome social — número 322% maior do que o total do primeiro ano da iniciativa. Na capital, de acordo com a SME, cerca de cem alunos usam o nome social nos dias de hoje.

Com frequência, porém, o pedido do nome social só é respeitado no papel timbrado dos boletins escolares. Também estão excluídos da contagem os casos em que o requerimento é negado pela escola, não raro com justificativas obscuras.

Coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da Defensoria Pública do Rio (Nudiversis), Mirela Assad diz que recebe, em média, um caso de desrespeito ao uso do nome social nas escolas por semana, tanto em instituições públicas quanto em privadas.

— O nome social não representa uma mudança no registro civil, mas dá dignidade à pessoa que se entende como trans. Evita que ela enfrente discriminação e situações vexatórias — ressalta.

Para atender ao pedido, a escola não pode exigir qualquer documento: basta o desejo manifesto do aluno. Caso a instituição resista, a Defensoria pode enviar ofício tratando da legislação vigente e, se necessário, recorrer à Justiça.

A fim de evitar que o problema chegue a esse ponto, contudo, Assad recomenda que a família providencie o quanto antes a requalificação civil do estudante. Segundo ela, a Defensoria atende, por semana, cerca de dois casos de retificação de documentos de crianças e adolescentes.

— Só quem participa das audiências de requalificação sabe o que isso significa para as famílias. Toda a família chora de alívio. É um peso, um sofrimento retirado da criança — conta a defensora. — Com a requalificação, é uma nova pessoa que nasce. A escola não tem mais argumento.

Violência institucional

A hostilidade do ambiente escolar é uma das maiores razões de evasão de estudantes LGBTQIA+, sobretudo entre pessoas trans. A exclusão desse público dos espaços de aprendizado reforça, a longo prazo, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, empurrando muitos para ocupações informais e precarizadas, quando não para a miséria ou para o arriscado universo da exploração sexual.

Outra faceta da violência institucional contra alunos trans é a restrição do uso dos banheiros. Segundo uma resolução de 2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, deve ser garantido aos estudantes o uso de banheiros e vestiários de acordo com a identidade de gênero de cada um.

Em fevereiro, Nicole Barbosa, de 16 anos, aluna do 2º ano do ensino médio do colégio estadual Liceu Nilo Peçanha, em Niterói, denunciou nas redes sociais que foi impedida de usar o banheiro feminino. À época, a Seeduc afirmou ter se tratado de “equívoco de uma funcionária”.

— Não tive reação. Fiquei impressionada, perplexa — conta a adolescente.

O episódio foi parte da sequência de constrangimentos que Nicole teve de enfrentar, inaugurada justamente pela recusa ao nome social.

— Mesmo depois de fazer o requerimento duas vezes, o nome social só foi posto na chamada após o caso do banheiro — diz Nicole. — Era bastante humilhante e desgastante ter o nome de registro sendo dito em voz alta por professores todos os dias.

Jovem trans e não binarie, Yohann Cachada, de 19 anos, aluno da Escola Técnica Estadual Ferreira Viana, conta que, no dia 2 de junho, ao se deparar com um tumulto na fila masculina da cantina — que ele costuma evitar por não se sentir seguro —, resolveu se juntar à feminina. Um inspetor que o observava tentou impedi-lo e disse em voz alta (violando também seu direito ao uso do pronome correto): “Essa aí não se decide! Ora está na fila masculina, ora está na feminina!”.

Assim a cena foi registrada por Yohann, no dia seguinte, na 18ª DP (Praça da Bandeira). O fato ilustra uma rotina de violências que gera, para além das feridas psíquicas, problemas educacionais.

— Reprovei duas vezes por questões psicológicas — diz.

Mães pela Diversidade

As Mães pela Diversidade estavam entre as entidades que protestaram em frente à escola de Nicole depois do caso de transfobia. No Rio, a organização tem hoje mais de cem participantes.

— Nosso objetivo é reunir famílias que estejam precisando de informação e acolhimento — explica Maria Cecília, coordenadora do Mães pela Diversidade Rio, mãe de um adolescente trans do Colégio Universitário Geraldo Achilles Reis, da Universidade Federal Fluminense (Coluni/UFF).

A administradora Maria Tereza Dourado entrou para o grupo há uma semana. Ela é mãe de Lucas Dourado, de 15 anos, aluno do 1º ano do ensino médio, que relata ter sido vítima de transfobia várias vezes no Colégio Intellectus de Vila Isabel, onde estudava.

Um dos episódios começou quando Lucas pediu a um inspetor a retificação de uma lista de chamada. A escola argumentou que a Seeduc tinha decidido que, enquanto ele não fizesse a retificação, o nome da lista teria de ser o de registro. Lucas contou para a mãe, que enviou à escola a resolução do MEC dizendo o contrário.

— O inspetor reapareceu na sala e disse: “Em respeito aos alunos que já assinaram a lista, vou explicar: o colega de vocês veio com o nome errado na lista. Na verdade, veio com o nome certo, porque o nome certo é o de registro. Mas ele insistiu” — conta Lucas.

Dias depois, Lucas tentou suicídio. Após quatro dias de internação, mudou para outro colégio, onde hoje se sente feliz. E o caso de transfobia foi registrado na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).

— É uma série de violências que começa pelo uso do pronome. As pessoas acertam pronome até de cachorro, quando perguntam se é macho ou fêmea. Mas não acertam com gente — diz Lucas.

Diretor do Intellectus de Vila Isabel, Thiago Fernandes disse, por nota, que, entre 2020 e 2022, Lucas foi tratado pelo nome social, inclusive na lista de chamada. Em um único episódio, foi usado o nome de registro para entrega de relatório aos órgãos competentes. “Sentimos pelo ocorrido e gostaríamos de reforçar que um erro isolado não destrói uma história de carinho e empatia”, escreveu.

Quanto ao caso de Tiago, a SME diz que acolheu o desejo da família. E ressalta que “fomenta ações voltadas para o debate, reflexão e atividades educativas e pedagógicas que contribuam na formulação de políticas inclusivas”.

Procurada, a Seeduc não respondeu.

*Colaborou Thayssa Rios

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