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Brasil

Alunos da USP denunciam pelo menos 400 casos de fraude em cotas raciais na universidade

Entre os casos, levantados no último ano, há pessoas de pele branca e olhos claros beneficiadas pelo processo de cotas raciais
Faculdade de Direito da USP Foto: Anderson Prado/12.11.2007 / Anderson Prado/12.11.2007
Faculdade de Direito da USP Foto: Anderson Prado/12.11.2007 / Anderson Prado/12.11.2007

SÃO PAULO — Um comitê formado por alunos da USP produziu um dossiê com mais de 400 denúncias feitas de forma anônima por alunos que apontam uso indevido de cotas por estudantes que não seriam negros , pardos ou indígenas.  Os casos, levantados no último ano, incluiriam pessoas de pele branca e olhos claros beneficiadas pelo processo de cotas .

O dossiê foi elaborado pelo Comitê Anti-Fraude da USP, comissão criada por alunos da Faculdade de Direito da USP em 2018, através de articulação com outros grupos organizados na Universidade. A USP, no entanto, informou ao GLOBO que recebeu apenas 21 denúncias de supostas fraudes através deste procedimento e que, se comprovadas, os alunos envolvidos sofrerão também as sanções criminais cabíveis. A Universidade afirmou desconhecer a existência de demais casos.

As defensorias públicas de São Paulo e da União enviaram à universidade uma série de recomendações para que a instituição crie mecanismos mais eficientes de combate a eventuais fraudes em cotas raciais no ingresso em seus cursos.

— Cada pessoa que fraudou corresponde a uma pessoa negra que deixou de entrar na universidade e com isso teve seu futuro sabotado. A chance de entrar na USP para essas pessoas é única e está sendo roubada — afirma Igor de Sousa, membro e um dos idealizadores do Comitê — Idealizamos uma estrutura para recepcionar as denúncias e encaminhá-las para órgãos competentes.

Todas as denúncias foram recebidas pelo comitê através de uma plataforma anônima que preserva a identidade dos denunciantes. As denúncias incluem como potenciais provas imagens de redes sociais e fotografias de alunos que estariam se beneficiando do regime de reserva de vagas indevidamente.

— É muito grave o que está acontecendo. Na Faculdade de Medicina, por exemplo, alguns [ denunciados ] não são pessoas que você olha e fica em dúvida. São pessoas com olhos claros, pele bem clara, obviamente brancas — alerta Igor — Do ano passado para esse ano, percebemos que aumentou muito o número de fraudes. As cotas na USP existem há dois anos. No primeiro ano, em alguns cursos, recebemos denúncias de que a cada quatro cotistas, um teria fraudado o ingresso. Nesse ano essa proporção fica maior – chega a uma denúncia para cada três cotistas, ou até mesmo metade deles.

Após recebidas, as denúncias passam por triagem pelo comitê para checar, por exemplo, se o aluno denunciado de fato está matriculado em curso da Universidade e se realmente ingressou por meio de cotas. Hoje o ingresso na Universidade se dá via Sistema de Seleção Unificada (SISU), pela prova de ENEM, e via vestibular tradicional, organizado pela Fundação Universitária Para o Vestibular (FUVEST).

“Chamamos atenção para o fato de que estas denúncias estão associadas somente ao ingresso por meio do ENEM, uma vez que as listas de ingressantes [ cotistas ] pela FUVEST não estão sendo divulgadas”, o Comitê alerta, em nota. Segundo o grupo, os números tendem a crescer se considerados os alunos ingressantes pela FUVEST.

O dossiê deve agora ser encaminhado para a que a administração central da Universidade tome as medidas necessárias. “Em nenhum momento o Comitê se propõe a valorar as provas, dizendo se esta ou aquela pessoa fraudou. Nosso trabalho se resume a organizar as informações e encaminhá-las às autoridades competentes”, ressalta o Comitê Anti-Fraude.

Isadora Brandão Araujo da Silva é coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública de SP e assina com outros defensores as recomendações de fiscalização enviadas para a USP na quarta-feira (24). O Núcleo tem organizado com a Universidade e o Comitê Anti-fraude tratativas extra-judicias sobre as potenciais fraudes.

Atualmente, alunos que ingressam na USP através de cotas devem assinar uma autodeclaração informando sua cor ou raça na matrícula. Também declaram-se cientes de que apenas pessoas com traços fenotípicos (traços físicos aparentes) característicos de pessoas pretas, pardas ou indígenas, podem fazer uso dessas ações afirmativas. A medida está de acordo com decisão do Supremo Tribunal Federal segundo a qual o principal critério para o uso de cotas deve ser o fenótipo. Assim, garante-se que apenas quem é ‘lido’ pela sociedade como parte desses grupos possa utilizá-las.

Em caso de suspeita de fraude, a Universidade recomenda que o denunciante realize um boletim de ocorrência (B.O) presencial. Provada a fraude após investigação com amplo direito de defesa, o denunciado deve ter a matrícula cancelada.

O procedimento atual adotado pela USP é alvo de críticas pelo Comitê e a Defensoria. A auto-declaração é passível de fraude e a realização do B.O expõe denunciante e denunciado e inibe mais denúncias, afirmam.

— A USP precisa adotar no próximo processo seletivo uma etapa que verifique a veracidade da autodeclaração dos candidatos, preferencialmente através de uma comissão formada por especialistas em questões raciais. Além disso, recomendamos que tenha instâncias oficiais que apurem denúncias sobre alunos já matriculados sem a necessidade do boletim, que expõe o denunciante — explica a Defensora.

Lento progresso nas questões tem sido observado pelo Comitê.

— Uma versão inicial do dossiê foi protocolado no final do ano passado na Faculdade de Direito e alguns alunos denunciados já foram convocados para prestar esclarecimentos à direção da Faculdade. Ali temos um bom diálogo com os professores, que perceberam como a situação é delicada — relata Igor.

Em nota, a Faculdade de Medicina da USP afirmou que repudia esse tipo de conduta e que "irá tomar providências com a Reitoria da Universidade, que prepara resolução com normas e orientações para que medidas legais e éticas sejam implementadas em todas as unidades da USP". A Universidade também afirmou ao GLOBO que, neste ano, teve mais de 40% de alunos matriculados oriundos de escolas públicas e, dentre eles, 40,1% na modalidade de cotistas por raça ou cor - o maior índice alcançado pela USP nos últimos anos. As medidas sugeridas pela Defensoria estão sendo analisadas pela Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP, criada em julho de 2018.