Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

Professores revolucionários são aqueles que não desistem de seus alunos

Mestres que, mesmo nessa realidade, nos ensinam a ser responsáveis por nossas escolhas são importantes

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Ontem, já sabendo sobre o que escreveria aqui, resolvi assistir "Ao Mestre, Com Carinho", um clássico do final dos anos 1960. A história do professor negro que foi dar aula em uma escola cujos estudantes eram desinteressados e a maioria dos docentes não tinha mais forças para ensinar é, também, a de muitos e muitas dedicados à educação.

Depois de tantos anos, será que eles, mestres e mestras, ainda imaginam o que nos tornamos? São tantos alunos que passam por suas vidas. Seja como for, a certeza que tive é a de que nós, os aprendizes, jamais nos esqueceremos daqueles que, como retratou Sidney Poitier no papel de senhor Thackeray, ao ensinar, passaram-nos uma lição de casa para a vida.

Na década de 1990, as escolas públicas nas periferias não tinham vagas o suficiente para todas as crianças. A partir das 4h da manhã, havia fila formada por mães no entorno dos prédios escolares. Era torcer para não ouvir da secretaria: "agora só ano que vem". Com minha mãe foi assim. Não conseguiu me pôr no que, naquela época, chamávamos de "Pré-1" e "Pré-2". Entrei, então, no "Pré-3".

Não sabia o que era escola. Mãe evitou me contar por medo do meu medo. Apenas disse que eu iria para um lugar com outras crianças e que deveria obedecer a uma moça —e que depois de um tempo iria me buscar. Gritaria, correria, muito choro, eu calado, observando sem conseguir acompanhar com os olhos.

Na lembrança, tudo pareceu um grande borrão até que alguém surgiu do meio dele e me puxou pelo braço. Em fila, subi para uma sala com várias mesas. Sentei-me ao lado de outros meninos e, então, ela surgiu. A moça a que eu deveria obedecer.

Alta, severa, colocou uma folha em branco diante de todos os alunos e disse apenas: "escrevam seus nomes". Eu sabia qual era o meu, só não sabia como escrevê-lo. Fiquei nervoso, com receio de abrir a boca e paralisado diante do sulfite. Ela veio até mim e gritou bem perto do meu rosto: "No primeiro dia de aula e você já quer me desobedecer, é?! Eu vou dar mais um tempo e quando acabar, quero seu nome na folha!".

O máximo que consegui fazer por mim foi não esgoelar e deixar escapar uma lágrima discreta. O menino ao meu lado —que viria a se tornar o primeiro colega feito em classe— perguntou como eu me chamava e escreveu na tal folha. Disse-me: "sempre que ela te pedir para escrever seu nome, copie este desenho".

Mãe ficou sabendo do ocorrido. Primeiro, ensinou-me a grafar meu nome. Eu o repeti 37 vezes em um caderno. Depois conversou com a docente. Na aula seguinte, a moça a quem eu deveria obedecer se aproximou de mim e disse: "Perdão, não sabia que você não tinha passado pelo Pré-1 e 2 e é analfabeto. Eu sou sua professora e vou te ensinar tudo, tá bom?".

A partir daquele dia, minha obediência era fruto de profunda admiração. Ao final do tal Pré, ela me elegeu orador da turma e pude ler o discurso de formatura diante de todos.

Depois de Laura vieram Suzana, Tânia, Luíza, Lurdinha, Cleusa, Lilian, Eliana e um que, aqui, farei questão de destacar. Pois ele, ao meu ver foi mais do que um ótimo professor. MC Alves, durante o ensino médio, quando estive sob sua didática, mudou o rumo de muitas vidas, incluindo a minha.

Preto, como a minoria dos professores, mas como a maioria dos alunos. O mais alto da escola. Calças coloridas, camisetas estilizadas, piercings nas orelhas, muitos anéis, às vezes tintura nos cabelos. Tudo contrastava com sua postura ereta, séria, silenciosa, perfeccionista, penetrante e, principalmente, intimidadora. Não por qualquer caráter violento. Pelo contrário, era polido, falava baixo. O que impunha respeito era a forma com a qual ele se comunicava e o propósito. Sabia os nomes de todos e só nos chamava por eles. Fazia perguntas para além da sala de aula. Um simples "Como estão as coisas fora da escola?" ou "E seu time que só perde, hein?" já desarmava qualquer primo de traficante.

MC Alves lecionou sobre Camões, apresentou-nos "Os Lusíadas", trouxe prosa e poesia, nunca palestrou sobre Marx, comunismo, "ideologia" ou política e foi revolucionário. Inclusive, em minha época de estudo a única "ideologia" que a maior parte dos professores colocava diante da sala era: "Estude para não puxar carroça; você quer ter seu carro?; tire nota alta para ser patrão e não empregado".

Já MC Alves conversava conosco sobre como seria a vida depois da escola, tinha interesse sobre como víamos o mundo, ajudava-nos a interpretar parte de nosso tempo e, principalmente, fazia com que nos colocássemos como, de fato, responsáveis por nossas escolhas, tal qual no momento de selecionar as melhores palavras para expressar, em texto, o que queríamos comunicar.

No cenário de extrema vulnerabilidade onde vi professoras pedindo para que armas fossem deixadas sobre suas mesas, mulheres com o triplo de minha idade saindo da sala chorando por não conseguirem falar, homens com olhares vazios e que não tinham mais forças para nos encarar, não há como esquecer de quem, ainda assim, fez o que pôde para que, hoje, nós pudéssemos algo.

Em um país cujo governo faz questão de manter como precária a profissão de docente e que os verdadeiros aficionados por ideologia buscam criar um clima inquisitório dentro e fora das salas, ser professora, ou melhor, ser mestra, é um ato revolucionário.

MC Alves me disse em nossa última conversa na escola: "Não pare de escrever". Lição de casa para a vida.

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