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Anna Carolina Venturini e Jacqueline Moraes Teixeira

Alguns porquês de se criar cotas na pós-graduação

Diversidade é essencial e proporciona inovação e excelência na ciência

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Anna Carolina Venturini

Diretora de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial

Jacqueline Moraes Teixeira

Antropóloga, é professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Cebrap

Em sua coluna nesta Folha (12/8), o jornalista Hélio Schwartsman questiona "por que manter cotas na pós-graduação?". Para ele, cotas não são necessárias, pois, como cotistas têm boas notas na graduação, basta realizar uma prova de conhecimentos para acessar a pós-graduação. Sem dúvida essa seria viável se o Brasil não tivesse altos níveis de desigualdade social, étnico-racial e de gênero. Nosso objetivo é apresentar um contraponto sobre a necessidade das cotas e explicitar como se dá o acesso à pós-graduação.

Apesar de as ações afirmativas terem transformado o ensino superior público nas últimas duas décadas, as desigualdades ainda persistem no ingresso e na permanência de estudantes negros, indígenas e de outros grupos que historicamente enfrentam situação de vulnerabilidade em cursos de graduação.

É falaciosa a ideia de que na graduação todos os alunos têm as mesmas oportunidades educacionais, a despeito do contexto racial ou socioeconômico. Essa visão desconsidera que muitos estudantes cotistas trabalham e estudam, não podendo se dedicar a atividades de pesquisa com a mesma intensidade de alunos de renda superior. Segundo dados da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), a necessidade de trabalhar é um obstáculo enfrentado por estudantes. As bolsas têm valores baixos e tiveram sua oferta afetada por cortes orçamentários nos últimos anos, o que é um impeditivo para quem precisa complementar a renda familiar.

Estudos apontam que, após o ingresso na universidade, estudantes negros e indígenas não acessam com equidade oportunidades acadêmicas que são valorizadas nas seleções da pós-graduação, tais como atividades de ensino e pesquisa (iniciação científica e monitorias), programas de educação tutorial e intercâmbios. Outro fator impeditivo de acesso à pós-graduação se refere à exigência de proficiência em língua estrangeira nas seleções, o que faz com que ações afirmativas na pós, não raro, sejam acompanhadas pela flexibilização do exame de proficiência no ingresso e por projetos de formação em idiomas como política de permanência.

Embora o colunista afirme que "uma prova de conhecimentos específicos da disciplina, que são adquiridos na graduação" seria suficiente para garantir o ingresso, essa não é a realidade da pós-graduação. As seleções são complexas e variáveis entre as áreas do conhecimento, envolvendo muitas etapas. Após analisar editais de quase 3.000 programas, o Obaap (Observatório de Ações Afirmativas na Pós-Graduação) identificou várias etapas possíveis, como prova escrita, avaliação de projeto, histórico, publicações e currículo, memorial, carta de motivação, cartas de recomendação, aceite do orientador pretendido, taxas de inscrição e outras.

Nas seleções, há critérios de avaliação cujas exigências superam o caráter mais objetivo das provas de conhecimento, abrindo margem de vantagem para pessoas cuja trajetória educacional passou por colégios de elite e que familiares já têm histórico acadêmico. Schwartsman apresenta uma avaliação rasa do papel das cotas na pós-graduação. Além das pesquisas aqui citadas, há muitos dados produzidos por institutos respeitados que apontam que alcançar maior diversidade racial e de gênero depende da criação de ações afirmativas.

Sobre o contexto ao qual o jornalista se refere, nos cabe dizer que, apesar do Departamento de Filosofia da USP seguir se recusando a enfrentar as desigualdades existentes em sua seleção e no seu corpo discente, as políticas afirmativas na pós-graduação crescem a cada ano na Universidade de São Paulo e e em todo o país.

Hoje, mais de 54% dos programas de mestrado e doutorado acadêmicos de universidades públicas têm ações afirmativas. Para falar apenas da USP, atualmente temos ações afirmativas em prol de pessoas negras, indígenas, trans e travestis, com deficiência, refugiadas, quilombolas e outros grupos em ao menos 30 programas de áreas como ciências biológicas, humanas, sociais aplicadas, da saúde e multidisciplinares.

A diversidade é essencial e proporciona inovação e excelência na ciência em termos temáticos, teóricos e metodológicos. Precisamos de ações afirmativas para corrigir desigualdades e, assim, transformar a pós-graduação em um ambiente plural.

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