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Ser mãe é padecer na internet

Opinião|'Alguns pais acham que estão em uma loja de departamentos e querem que a escola mude para atendê-los', afirma educador

'Quando você coloca seu filho na escola, está apostando em uma proposta, acreditando nela', completa

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Imagem: Pixabay Foto: Estadão

Temporada de matrículas aberta e muitos pais perdidos. O que levar em consideração no momento de escolher a escola do filho? Alguns estão recalculando a rota e tentando mudar os caminhos ao observar que as crianças estão infelizes. Mas, em muitos casos, são os pais que estão perdidos. Apegados à escola que habita em sua memória afetiva, com giz, lousa e boletim, ficam confusos ao perceber que algumas instituições começam a se reinventar assim que notam que os jovens de hoje têm precisado de mais do que até então estavam acostumadas a oferecer. Alexandre Le Voci Sayad, jornalista, educador e membro do comitê GAPMIL da Unesco, conversa hoje com pais na roda de encontros Matutaí, na Livraria da Vila, sobre "a boa relação com a escola que você escolheu", e falou com o blog horas antes dessa conversa com os pais.

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Blog: Como se escolhe a escola de um filho?

Alexandre: É importante que os pais saibam um pouco sobre o tempo que estamos vivendo hoje, na educação e na sociedade, o que o (Johann Gottfried) Herder chama de Zeitgeist, "o espírito do tempo", ou seja, como a sociedade está se informando de forma de rápida, com um excesso de informações no ar, com um excesso de oportunidades. Existe um contexto fora da escola, na vida, que impacta em como a educação é enxergada hoje. Eu acho que os pais têm de se atualizar para ter noção de como esse impacto está chegando na escola. Por isso eu defendo que a escola eduque esse pai ao mesmo tempo em que educa o filho. Porque os pais viveram outra educação e nem todos estão ligados nessa mudança. A segunda dica é conhecer bem o seu filho, não importa a idade que tenha. Isso não significa que com cinco anos de idade você vá conseguir saber o que ele vai "ser quando crescer". Mas você pode tentar entender quais são aptidões e as vontades que tem como sujeito e as coisas que você gostaria que ele vivesse em seu percurso de vida. Ele vai ter uma trajetória que vai passar pela escola, mas a escola não vai ser o único lugar onde ele vai aprender, embora seja um lugar importante ainda.

Blog: E quando você fala em conhecer seu filho você sugere que entendamos seu temperamento e habilidades?

Alexandre: Sim, sim. Mas se você pesquisar sobre educação infantil logo vai descobrir que existe uma linha "escolarizada" e uma "desescolarizada".Então é o momento de enxergar seus princípios, o de sua companheira ou companheiro, e ter a sensibilidade para entender o que seu filho precisa naquele momento e de que forma você gostaria que ele começasse a vida dele. Eu, como pai, não gosto dessa corrente escolarizada na educação infantil. O valor da educação infantil é brincar, sentir, se conhecer, descobrir, se relacionar.

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Quando as crianças chegam no ensino fundamental 2 ou no ensino médio, suas aptidões ficam mais evidentes, você consegue perceber o que elas sonham. Em terceiro lugar, você deve conhecer a escola em que está considerando matricular seu filho, saber o que aquela escola propõe pedagogicamente. Isso é um pouco complexo porque essas correntes, de escola tradicional, construtivista, Waldorf e outras, por exemplo, dissolvem-se e se misturam muito.Mas toda a escola tem uma aplicação prática para aquilo que acredita, não importa o nome.O cruzamento dessas três informações é um passo importante para que você chegue em uma escola mais próxima dos seus desejos e sobretudo do desejo do seu filho. Às vezes, a gente pensa só como pai e esquece deles, dos filhos.Mas o desejo deles tem que estar misturados aos nossos.

Imagem: Pixabay Foto: Estadão

Blog: Como conhecer o desejo dos filhos quando eles ainda são muito pequenos?

Alexandre: Conhecer o filho pequeno passa pelo "sentir". Sentir suas necessidades, sentir o acolhimento, sentir que no espaço da escola existe uma continuidade do que ele tem em casa, o ambiente onde ele se sente bem. Quando eles são muito pequenos, os pais ficam muito em dúvida sobre se devem ou não colocá-los na escola em tempo integral, por exemplo. Acho que nesse aspecto, a questão é mais você saber a necessidade do seu filho do que propriamente ser esse um valor absoluto, "é bom" ou "é ruim". Algumas crianças se adaptam bem na educação integral desde pequenininhas, outras não, porque têm uma necessidade de estar mais próximas dos pais. Isso é conhecer seu filho pequeno.

Blog: Agora vou fazer a pergunta inversa: Como não se escolhe a escola de um filho?

Alexandre: Quando, em uma atitude intempestiva ou radical, você resolve apostar em uma instituição que tem um conjunto de valores muito diferentes do que você tem na sua casa. Esse é o primeiro passo para dar errado. Eu vejo muitos conflitos na relação entre escolas e pais quando alguns valores não se encaixam. Alguns pais acham que estão em uma loja de departamentos e querem trocar o produto, ou trocar o serviço, ou fazer com que a escola mude para atendê-los, como se fosse um comércio. É mais fácil você mudar seu filho de escola do que querer que a escola mude algo porque algo não está te interessando mais. Existe um limite de avanço, da escola e dos pais. Quando você coloca seu filho na escola, está apostando em uma proposta, acreditando nela.

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Blog: Esse tipo de desencanto fala sobre a relação que os pais têm com a escola dos seus filhos? Eles acreditam que a relação entre pais e instituição de ensino é de consumo?

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Alexandre: A gente tem um problema inverso no Brasil. A escola pública é cobrada de forma errada e a escola particular também é cobrada de forma errada. Os pais da escola pública, muitas vezes, não cobram um ensino de qualidade e sim a merenda, que também é importante, claro, mas que é periférica ao ensino. Na particular existe uma soberba de parte da classe média que acha que "está pagando" um serviço e tem o direito de arbitrar como quiser na escola.

Também acho que a relação entre os pais e a escola é pouco inovadora hoje. Os pais têm grupos de whats app que são a crônica de um desastre anunciado, onde se fala sobre tudo, menos sobre educação. Eu, como educador, procuro propor inovações nessa área de contato entre pais e escola. Isso significa não só usar a tecnologia, mas também usar a tecnologia, colocando as duas partes na "mesma página", tornando essa relação mais propositiva e menos a de um balcão de reclamação.

O jornalista e educador Alexandre Le Voci Sayad Foto: Estadão

Blog: Como isso pode ser feito?

Alexandre: Tem uma escola em Sorocaba em que a gente propôs uma roda mensal de conversa sobre educação para os pais, com temas que eles não estão habituados. Falamos de questões socioemocionais, um tema muito contemporâneo para nós mas, às vezes, não para os pais que trabalham no mercado financeiro, por exemplo. Então a gente traz pessoas de fora para falar sobre o assunto. Essa roda gera conteúdo para o aplicativo da escola. Às vezes a roda é sobre iniciativas educacionais que a escola está implementando. Se você olhar para um diretor de uma instituição de ensino vai observar que ele gasta 70% do tempo dele atendendo pais, 'apagando incêndios' continuamente. Ele não consegue parar e olhar para escola para pensar sobre iniciativas interessantes. Essa busca constante pelo diretor diz muito sobre o anacronismo dos pais em relação à educação de hoje. Se você tem um mecanismo que absorve essa demandas mais conceituais, você qualifica a relação entre as duas partes.

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Blog: Qual a dificuldade que os pais têm em entender as mudanças na educação de hoje?

Alexandre: A maior falácia dessa relação é aquela máxima, "ah, na minha escola eu aprendi com giz, lousa e saliva. E olha onde eu estou hoje, em uma posição profissional super confortável". Mas tudo mudou e não faz mais sentido manter aquele padrão de antes. Existe uma mudança sistêmica de cenário acontecendo. E não são todos que estão a par disso. Se uma mãe colocar seu filho hoje na mesma escola onde estudou, ela vai encontrar uma outra escola, diferente daquela que tem na sua lembrança. Se ela não estiver ciente disso, vai se decepcionar, porque a realidade lá dentro agora é outra. O Enem, que nem existia na época desse pai e dessa mãe, é um exame que mexeu com o vestibular ao começar a propor questões mais analíticas e socioemocionais. O exame de admissão da FGV para o curso de direito, por exemplo, é totalmente baseado em questões socioemocionais. É feito em um trabalho em grupo, com criação, entrevista e, claro, com um exame de proficiência, mas que representa apenas um pedaço dessa avaliação mais ampla. Será que os pais estão acompanhando isso ou estão com aquela Fuvest tradicional, da nossa época, na cabeça?

Blog: Se não tiver isso em mente, os pais vão estranhar a escola de hoje?

Alexandre: Se ele não for procurar essa mudança das escolas, se ainda estiver procurando outra coisa, acontece o ruído.

Blog: O que as coisas estão fazendo para mudar, no seu ponto de vista?

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Alexandre: As escolas estão buscando preservar as características da educação infantil até o ensino médio. O que significa isso na prática? Educar pelo fazer. Existem escolas investindo nos espaços "makers" que agregam várias disciplinas em uma mesma aula, propondo a construção de alguma coisa, com o cultivo da criatividade, com a avaliação das competências, mas também das habilidades socioemocionais, que apostam na resiliência, no trabalho em grupo, na análise crítica, na leitura de mídia. Uma pesquisa recente mostrou que 65% das crianças que entram hoje na escola vão trabalhar em profissões que ainda não existem, então precisamos olhar não somente para conteúdo. Precisamos olhar para a criação, a descoberta e compreensão. Criar um portfólio para o aluno, tirar o olho do boletim. Você precisa ver o que esse estudante tem criado, não apenas as notas que ele está tirando.

Blog: Algumas escolas já pensavam assim, não?

Alexandre: Se você observar bem, isso é tudo o que as escolas Waldorf sempre pregaram, são coisas nas quais as escolas construtivistas sempre acreditaram. E essas escolas eram aquelas consideradas "mais fracas". O que está acontecendo não é bem uma novidade sob esse aspecto. Existe uma demanda do mercado por estudantes assim, mas existe também uma demanda da vida. Saber lidar com as frustrações no mundo de hoje, entender o bullying como algo mais sério do que na nossa época, tudo isso tem uma implicação mais direta e provocam essas mudanças das quais eu estou falando. As escolas estão olhando mais para o aprendizado, em vez de olhar para o ensino. O foco tem que ser no aluno, e não nos pais. E as escolas estão focando no aluno e no que eles precisam para ter uma vida boa, saudável, para saber se relacionar e, ao mesmo tempo, ter oportunidades de trabalhar em um mercado de trabalho cada vez mais dinâmico.

Blog: A escola e os pais ampliaram o olhar?

Alexandre: As escolas ainda estão correndo um pouco mais na frente. Ainda é necessário acelerar um pouco o olhar dos pais. Mas, de fato, essas escolas conteudistas estão dando o braço a torcer para aquelas escolas que elas não gostavam tanto, que eram as mais "alternativas". Essas escolas já estavam, lá atrás, trabalhando coisas que estão faltando na escola tradicional de hoje.

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Mês que vem, no dia 10/10, o encontro da 'Roda' é com a psicóloga e psicoterapeuta Lucia Rosenberg, palestrante do TED e professora na Casa do Saber sobre o cultivo dos vínculos familiares. Quer saber mais sobre a "Roda de encontros Matutaí" aqui.

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Leia também: Sobre como é difícil criar um filho não machista em um mundo machista 

 

Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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