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Fernando Cássio

Agradeçam aos professores

Devemos a eles a descoberta dos erros chocantes no material didático paulista

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Fernando Cássio

Educador, doutor em ciências (USP) e professor da UFABC; integra a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Agora que a Justiça impediu a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) de recusar 10 milhões de livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o debate público se volta para o "material digital" que o secretário Renato Feder alardeia como alternativa revolucionária aos livros do MEC.

Feder, sabe-se, vê a atividade docente como uma espécie de coaching de estudantes. Na visão dele, acionista de uma empresa de tecnologia com contratos ativos com a secretaria que ele próprio administra, a aula do futuro é aquela em que o professor passa slides com conteúdo bem mastigadinho numa tela e os estudantes anotam. Os tópicos serão retomados "ipsis litteris" nas perguntas das avaliações oficiais, cujos resultados revelarão a todos o toque de Midas do empresário na gestão da educação pública.

O governador, Tarcísio de Freitas, e o secretário de Educação, Renato Feder
O governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o seu secretário da Educação, Renato Feder - Flávio Florido/Seduc-SP

Na vida real, porém, a Seduc-SP está distribuindo slides coalhados de erros para 3,6 milhões de estudantes. Os mais recentes foram encontrados em materiais de aulas de história, matemática e ciências para o ensino fundamental. Há erros factuais elementares, textos ambíguos e informações descontextualizadas. Na semana anterior foram as aulas de química do ensino médio (com interpretações simplórias e modelos científicos do século 19) e de língua portuguesa (com linguagem incompatível com o ciclo de alfabetização de crianças de seis anos). Há muito mais.

Expostos os problemas, a solução do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) foi individualizar responsabilidades e afastar os professores alegadamente responsáveis pela elaboração dos materiais. Será este o procedimento diante de cada erro grotesco encontrado nos slides?

Os problemas, por óbvio, não são pontuais, mas Feder tenta sair pela tangente usando o discurso moralista para o qual descambam os debates sobre erros em materiais didáticos feitos por não especialistas: "Olha o que estão ensinando para as nossas crianças!". Nesta "escola-sem-partido-com-sinal-trocado", a culpa —o secretário sabe disso— é sempre dos professores.

Feito para ser usado de forma digital, material didático precisa ser impresso pelas escolas para ser usado
Feito para ser usado de forma digital, material didático precisa ser impresso pelas escolas para ser usado - Reprodução - Reprodução

Em 2008, no livro que publicou com um de seus sócios, Feder afirmou que, nas escolas públicas, os alunos "estudam com professores semianalfabetos". Agora, ele pega carona no escândalo atual visando comprovar a sua tese repugnante e afastando quem quer que ele responsabilize individualmente pelo rebaixamento da qualidade do ensino público.

Ocorre, porém, que especialistas qualificaram sistematicamente as opiniões emitidas pelo secretário sobre materiais didáticos como as de um completo ignorante em matéria educacional.

Não é surpresa que slides produzidos em exíguos 30 dias estejam repletos de erros. Um livro didático em estado "bruto", antes de passar pelos inúmeros processos de revisão textual, conceitual, didático-pedagógica e de checagem, também são repletos de erros. Alguns até crassos. E não é que os autores sejam incompetentes. É que a produção de materiais didáticos é uma das coisas mais complexas que existe. Demanda tempo, dinheiro e equipes qualificadas. Eis a receita do PNLD. Não é milagre.

O problema verdadeiro da Seduc-SP, do qual o secretário não fala, é pressionar equipes a produzirem slides a toque de caixa e em escala industrial para transformar professores em apertadores de botões. Estão economizando tempo e dinheiro numa atividade de alto consumo de recursos, necessários para garantir sua qualidade. O que há agora é uma política de rebaixamento ativo do ensino paulista por meio da oferta de um material didático ruim.

Professores precisam de salários, carreiras e condições de trabalho melhores para não ter de recorrer a slides chinfrins em razão de suas jornadas exaustivas. Mas a secretaria prefere oferecer slides para poupar investimento público e garantir que os professores não pensem no que fazem e ensinam.

A cartada que resta ao secretário da Educação que odeia professores e não entende de educação é a inversão da responsabilidade: culpabilizar os professores, bodes expiatórios de sempre, e descartá-los.

São esses profissionais, contudo, que estão revisando os slides da Seduc-SP em praça pública e revelando à sociedade os absurdos que estão em curso na educação paulista sob os bolsonaristas Feder e Tarcísio. Quem se escandaliza com a escola pública que ensina que há praias na cidade de São Paulo deveria agradecer aos professores.

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