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Economia

'A sociedade despertou para sua desigualdade', diz um dos criadores do Bolsa Família

Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco, diz que, para além do auxílio, faltaram políticas sociais na crise
O economista Ricardo Henriques diz que se abriu uma fresta de oportunidade para se discutir um novo contrato social mais inclusivo Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
O economista Ricardo Henriques diz que se abriu uma fresta de oportunidade para se discutir um novo contrato social mais inclusivo Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

RIO - Gestor público, estudioso das políticas de ensino básico no Brasil e um dos formuladores do programa Bolsa Família, o economista Ricardo Henriques afirma que, além do auxílio, nenhuma política social foi implementada pelo governo para enfrentar o tamanho da crise.

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Para ele, “houve um despertar da sociedade brasileira para sua desigualdade”, o que representa “uma fresta de oportunidade” para fazer mudanças estruturais.

— A sociedade viu de forma cristalina o desesperador que é um contexto onde se nega a ciência, que é o moralismo organizando o campo da política, que é o negacionismo.

A população mais pobre que ficou sem emprego com a crise não terá mais o auxílio emergencial. Como ficam a pobreza e a desigualdade?

A gente sabe que o trabalho informal não vai absorver o tamanho de crise como ele tradicionalmente absorvia. Do ponto de vista dos componentes sociais, há muitos sinais de que a situação deve piorar. Uma parte porque o auxílio emergencial, que foi muito potente, não deve ficar no valor que vigorou até agora.

A outra por causa da suspensão de uma agenda de política pública, sobretudo no campo social, que ocorreu em 2020. Esses fatores tendem a sinalizar que 2021 vai ficar pior, com desemprego intenso, sobretudo para os mais jovens e situações de precarização muito alta.

O que faltou ser feito?

Essa combinação de ainda não ter saído da crise pretérita, que é a de 2015 e 2016, e ter entrado numa crise associada à pandemia tendo tido apenas o auxílio emergencial, e não a construção de rede proteção social ao longo desse ano (2020), tendem a piorar desproporcionalmente os indicadores sociais e fazer com que a retomada depois seja mais lenta que a usual.

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O fato de não ter uma rede de proteção social em 2020 para além do auxílio nos coloca numa situação em 2021, em que todos os efeitos negativos sobre a coesão social podem estar amplificados.

A desigualdade volta a aumentar este ano?

Podemos entrar numa trajetória de aumento da desigualdade por mais anos. O auxílio emergencial fez uma potente suspensão momentânea da desigualdade, mas nenhum dos fatores estruturais da desigualdade foram sequer tangenciados. A gente segue precisando ter uma política social muito mais estratégica e inclusiva.

Aparentemente, o que a gente viu, ou por total ineficiência ou talvez com alguma intencionalidade, é que as posturas da política pública na área de educação, saúde, direitos humanos e meio ambiente parecem todas estar dirigidas para desconstrução de uma agenda republicana.

De que maneira se deu essa desconstrução?

Uma ilustração categórica disso é o negacionismo da agenda climática e uma política dirigida a incentivar o desmatamento. Esse negacionismo que se transforma em irresponsabilidade com a questão da mudança climática é um sinalizador dessa agenda de desconstrução, análoga à agenda de direitos humanos, análoga à ausência do Ministério da Educação para enfrentar um desafio tão notório, reconhecido pela sociedade como um todo, de um mínimo de inclusão digital.

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Passamos 2020 e não houve nenhum movimento. Poderíamos ter dedicado um tempo para desenhar uma estratégia de inclusão para escolas em 2021, garantir que todas as escolas públicas do Brasil — estamos falando de 45 milhões de alunos — fossem conectadas com velocidade, com banda larga. E ainda há defesas de expansão do ensino domiciliar que são totalmente anacrônicas e irresponsáveis, porque são punitivas aos mais vulneráveis.

Está havendo um desmonte deliberado dessas políticas?

Deliberado, eu não sei dizer. O auxílio emergencial foi muito positivo, mas importante lembrar que a potência do auxílio está associada ao seu valor per capita de R$ 600. Essa não foi a intencionalidade da política governamental. O auxílio foi construído no Congresso, a partir da pressão da sociedade civil.

Ele efetivamente conteve a degradação econômica e social para uma quantidade enorme de famílias. Mas o desenho original era de um terço desse valor. A intencionalidade da política de meio ambiente, da educação, da saúde, no que se refere a todos os protocolos sanitários e de vacinação não vai em direção a reduzir desigualdade.

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Quais consequências dessa suspensão tão longa das aulas?

Uma suspensão de um ano de atividades presenciais exerce uma pressão de evasão naqueles que não viam muito sentido na escola, principalmente no ensino médio. A esse efeito se sobrepõe a crise econômica, a reorganização familiar em 2021 para gerar renda, portanto, uma pressão também para evasão dos jovens.  Não sabemos o tamanho da evasão, mas há estimativas de que pode chegar a valores muito altos, frente a uma história recente de uma evasão que estava caindo de forma significativa. Voltar a patamares anteriores é muito preocupante.

Outra coisa é a aprendizagem. Pode haver um retrocesso de mais de seis meses. Essas perdas nunca vistas não geram efeitos só para 2021, geram efeitos para toda a geração que está na escola. Gestores, diretores de escola, professores vão precisar entender quem precisa de reposição de aula, de acolhimento afetivo, emocional. Eu não subestimaria essas dimensões. O efeito dessa cauda longa da pandemia não vai ser compensada em 2021.

Quais as consequências para os jovens?

Parte relevante dessa juventude simplesmente vai abandonar os estudos, vai aumentar a quantidade de jovens que sequer concluem a educação básica, o que para sociedade do conhecimento é um desastre absoluto.

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Há ainda uma outra parcela grande que, mesmo que conclua seus estudos, será de tal forma tão precária, que vão estar aquém dos seus imediatos predecessores, numa situação pior do que os que concluíram há dois, três anos atrás. Um cenário possível é que esses jovens em 2023 entrem na educação de jovens e adultos, porque a defasagem pode ser tão grande que eles terão de voltar à escola. Vão entrar de forma muito mais precária no mercado de trabalho.

O olhar para essa juventude solicita uma visão mais dinâmica e ousada da política social, e isso só será possível se tivermos um novo contrato social contemporâneo.

É um possível um novo acordo social com a sociedade tão polarizada?

Houve um despertar da sociedade brasileira para sua desigualdade. Isso é fato e abre uma janela de oportunidade, pequena, talvez uma fresta de oportunidade, mas ela existe. Ela não estava colocada antes da pandemia. A sociedade não estava olhando para suas desigualdades como está hoje. Ela viu, de forma cristalina, o desesperador que é um contexto onde se nega a ciência, que é o moralismo organizando o campo da política, que é o negacionismo.

Sobre essa fresta de oportunidade existe a possibilidade do reconhecimento do absurdo que é seguir vivendo num campo em que a pandemia explicitou os vetores de retrocesso e de negação de civilização minimamente adequada e consequente na sociedade contemporânea.