Exclusivo para Assinantes
Política

A pessoas com deficiência auditiva, governo terá o desafio de promover educação inclusiva e bilíngue

Os principais obstáculos esbarram na educação; ensino de libras não é obrigatório no sistema público
Intérprete do discurso de posse de Bolsonaro; língua de sinais ganhou destaque na solenidade com pronunciamento em libras da primeira-dama Foto: EVARISTO SA / AFP
Intérprete do discurso de posse de Bolsonaro; língua de sinais ganhou destaque na solenidade com pronunciamento em libras da primeira-dama Foto: EVARISTO SA / AFP

SÃO PAULO - A língua brasileira de sinais ganhou destaque na largada do governo Jair Bolsonaro , incentivada pela primeira-dama, Michelle, que até discursou em libras na posse do marido. A atenção desperta agora a expectativa de educadores, intérpretes e pessoas com deficiência auditiva — são 10 milhões no Brasil — que reconhecem ser longo o caminho até uma política eficiente para surdos.

Os principais obstáculos esbarram na educação. O ensino de libras não é obrigatório no sistema público, e a lei de inclusão, que pressupõe a presença de intérpretes em salas de aula regulares, não é garantia efetiva nas escolas.

A língua brasileira de sinais foi reconhecida como tal, por lei, em 2002. Já o reconhecimento da profissão de intérprete em libras veio em 2010. O projeto, curiosamente, é de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que, em 2003, ouviu do então deputado Bolsonaro que “não merecia ser estuprada” por “ser muito feia”. Com a ascensão de Bolsonaro ao Planalto e a adesão voluntária à causa de Michelle, a demanda por intérpretes em eventos oficiais deve aumentar, embora a visibilidade exponha também um ponto sensível: não existe um padrão de formação de intérpretes em libras.

Intérprete do discurso durante posse de Bolsonaro Foto: Reprodução
Intérprete do discurso durante posse de Bolsonaro Foto: Reprodução

— Falta fiscalização no cumprimento da lei de inclusão em classes regulares e na preparação dos intérpretes. Muitos se formam em cursos de 30 horas, insuficientes para dominar a língua e as técnicas de interpretação. Isso desanima um aluno, pode levar à evasão escolar — diz Miriam Caxilé, educadora e intérprete em libras no Centro de Educação para Surdos Rio Branco, em São Paulo, que oferece graduação em Pedagogia e aulas em libras até o quinto ano do Ensino Fundamental (os alunos podem continuar a educação no colégio Rio Branco com a ajuda de intérpretes).

Um abismo

A comunidade de professores, pesquisadores e surdos reconhece alguns avanços nos últimos anos. Implantaram-se cursos de Letras-Libras e, em 2017, o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, passou a ser oferecido em libras. Mas há críticas, também, para uma “inclusão generalizada” que levou ao fechamento de várias escolas de surdos, que passaram a outras nem sempre com intérpretes.

— Existe um abismo hoje na relação com essa população por desconhecimento. Há a barreira da comunicação, preconceito, assistencialismo. Precisamos de educação bilíngue para as crianças surdas, que a língua de sinais se torne disciplina curricular nacional, como o inglês ou o espanhol. Vamos aproveitar e lutar por políticas públicas melhores — afirma Miriam.

Uma sugestão apresentada ao Senado em março do ano passado por uma pedagoga por meio do Portal e-Cidadania, que pedia transformar libras em disciplina obrigatória nas escolas públicas do país, foi rejeitada em dezembro. Em reunião da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), a relatora Ana Amélia (PP-RS) orientou que a sugestão fosse encaminhada ao Poder Executivo, “a quem cabe a iniciativa desta matéria”.

Educadores, profissionais da área e surdos esperam que o tema seja retomado na nova gestão, assim como uma formação mais rigorosa para intérpretes. Já a recém-anunciada extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), voltada, entre outros temas, aos surdos, parece não causar alarde por enquanto. O novo Ministério da Educação, comandado por Ricardo Vélez Rodriguez, anunciou outra subpasta, chamada Modalidades Especializadas.

— Essa não é uma questão de primeira-dama ou segundo escalão de ministério ou secretaria. É interministerial. Temos 22,7% da população brasileira com alguma deficiência. É preciso ter um governo que acredite na igualdade de todos e no direito a ter respeitada sua diferença — afirma Teresa Costa d'Amaral, superintendente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD).

Segundo ela, o país tem uma das melhores legislações das Américas em reafirmar os direitos da pessoa com deficiência, mas “tudo está por fazer” na construção de políticas públicas.

— O mais urgente é uma política de educação inclusiva. Não adianta ter intérprete de libras se o surdo não consegue se comunicar. Nem intérprete na televisão se a pessoa com deficiência não sabe libras. É preciso ter (legendas) closed caption, sinais sonoros nas ruas para cegos — sugere.

Língua brasileira de sinais foi inspirada na francesa

Reconhecida em 2002 como meio legal de comunicação e expressão de surdos e pessoas com deficiência auditiva, a língua brasileira de sinais, ou libras, foi baseada no seu equivalente francês e, aos poucos, ganhou estrutura e estilo próprios por aqui. Hoje tem estrutura gramatical definida, com novos sinais validados a cada ano entre pesquisadores, professores e a comunidade surda. É uma língua viva, como o português ou qualquer outra, e até com “sotaques” nos sinais entre diferentes regiões do Brasil.

— Cada país tem sua língua de sinais. E, como se trata de uma língua, tem suas características. Um surdo brasileiro usa sinais diferentes de outro dos Estados Unidos, do Paraguai ou da Argentina. E há regionalismos também. Alguns sinais são entendidos de uma forma no Rio e de outra em Porto Alegre. Mas isso não chega a impedir a comunicação — conta Paulo Roberto do Nascimento, chefe de gabinete e professor de Matemática no Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), no Rio de Janeiro.

Certa vez, no Sul, ele fez um sinal da letra “M” sacudindo a mão para baixo, em um gesto que significaria “Mestrado” no Rio, mas que foi entendido como “Matemática”. Outra vez, em um congresso em São Paulo, viu surdos do Nordeste pedirem um intérprete em libras da mesma região, pois estavam mais habituados àquela forma de interpretação.

O discurso em libras da primeira-dama Michelle Bolsonaro e a atuação de outros intérpretes na posse, afirma o especialista, tinham as particularidades de Brasília. Cada localidade tem as suas. Para dizer que é do Rio, por exemplo, o professor do Ines aponta com o dedão na altura da marca de vacina no braço — vale lembrar que a Revolta da Vacina em 1904 aconteceu no Rio.

— Há sempre um contexto. E a expressão facial é fundamental. O surdo é bem figurativo nesse aspecto. Ninguém vai fazer um sinal de triste sorrindo. É preciso fazer o sinal e acompanhar com a expressão facial para se ter ideia do que está falando — explica Nascimento, que diz ter aprendido libras em um ano no Ines.

O instituto, na Zona Sul do Rio, oferece cursos regulares de Educação Fundamental e também curso superior bilíngue de Pedagogia para surdos, além de organizar seminários e assessorias a órgãos públicos.

Há ainda cursos gratuitos de libras para a comunidade em geral, que duram até dois anos e meio. As inscrições são abertas no início do ano, geralmente em fevereiro. Há um sem-fim de novidades por descobrir no mundo das libras. Nascimento conta que, ao contrário do português, as frases em libras não são construídas “palavra por palavra”.

— Libras não é um português finalizado. Muitas vezes, uma frase toda é dita só com uma expressão e um sinal. Depende do contexto. Não é preciso falar, por exemplo, “Eu vou para casa”. Se faz o sinal de casa e a expressão facial. Quase como um “vou casa” — diz Paulo.

Outros sinais são bem literais: “bom dia” é representado com a mão “explodindo” da altura da boca, e depois um meio arco, como se o sol nascesse. Já em “boa tarde” a mão “explode” e depois abaixa, como o sol nesse horário. Para “noite”, uma mão passa sobre a outra, como se o sol estivesse se pondo. E há outros sinais com origem local: “sexta-feira”, no Ines, é representada com o sinal da escama de peixe: o dedo indicador virado, passando no rosto, perto da boca.

— É que sexta era o dia em que se comia peixe no Ines — brinca Nascimento.