Exclusivo para Assinantes
Celina

'A pandemia adiou os meus sonhos': o impacto da covid-19 nas vidas de jovens que se preparavam para o Enem

Em série que aborda o impacto da pandemia sobre as jovens brasileiras, estudantes falam sobre os desafios de ter que lidar com a pandemia no ano em que o plano era ingressar na universidade
Juliana Andrade, 19 anos, e Letícia Martins, 18 anos, viram seu planejamendo para o ano virar de cabeça para baixo com a chegada da Covid-19 Foto: Arquivo Pessoal
Juliana Andrade, 19 anos, e Letícia Martins, 18 anos, viram seu planejamendo para o ano virar de cabeça para baixo com a chegada da Covid-19 Foto: Arquivo Pessoal

Desde o início da pandemia, especialistas alertam que as mulheres estão entre os grupos mais vulneráveis aos efeitos da crise gerada pela Covid-19. Por isso, na semana de 10 a 15 de agosto, Celina publica uma série de matérias e entrevistas em que 11 brasileiras — todas entre 18 e 24 anos, pertencentes a regiões e classes sociais diferentes — contam como veem o futuro de sua geração. Elas refletem sobre seus sonhos, preocupações e expectativas, revelando como o novo coronavírus atinge as vidas das jovens mulheres brasileiras.

Depois da vacina: Como será o futuro das mulheres no mundo pós-pandemia? Onze brasileiras respondem

Leia abaixo as entrevistas com as estudantes Juliana Andrade e Letícia Martins:

"A pandemia adiou os meus sonhos", afirma a estudante carioca Juliana Andrade, de 19 anos. Aluna do terceiro ano do Ensino Médio, em seus planos, o ano de 2020 seria dedicado aos preparativos para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O objetivo era um só: garantir uma vaga em uma universidade pública. A pandemia do novo coronavírus impactou o planejamento de muitos dos quase 6 milhões de inscritos na principal prova de acesso ao ensino superior no país, que acabou sendo adiada para o início de 2021 por causa da doença. Assim como Juliana, boa parte dos estudantes estão sem aulas presenciais desde março e tem acesso restrito ao ensino à distância, logo num ano decisivo e cheio de pressão como o do Enem.

— A Covid atrasou meu sonho de entrar numa faculdade pública. Para jovens como eu, que pertencem à camada mais pobre da sociedade, é muito difícil recuperar esse tempo perdido de estudo — diz a jovem, moradora do bairro de Cavalcante, periferia na Zona Norte do Rio de Janeiro

Artigo: Negra, 18 anos, periférica... e representante do Rio no Parlamento Juvenil do Mercosul

Ela considera que a suspensão das aulas, apesar de necessária, combinada ao aprofundamento da crise econômica, vai fazer com que muitos jovens mais pobres tenham que desistir de tentar entrar no ensino superior e optem por trabalhos mais estáveis e menos qualificados, para garantir a subsistência. Para ela, felizmente, o sonho será apenas adiado.

— Tenho uma família que sempre me apoiou e continua me dando esse direcionamento no sentido de planejar uma vida para realizar os meus sonhos. Não descarto um emprego provisório para sobreviver, num primeiro momento, mas não abro mão do sonho de entrar em uma universidade pública e me formar. Mas sei que muitos jovens não terão essa opção — afirma a estudante.

Apesar de ter a certeza de quer entrar em uma universidade pública, Juliana conta que ainda não definiu o curso que quer seguir. Direito, Pedagogia e Relações Internacionais estão entre as opções. Mas desabafa:

— Está muito difícil criar expectativas para o futuro, olhar para o horizonte. Há muita coisa acontecendo. Tem esse governo, que não tem sequer ministro da saúde, as operações policiais nas favelas, que não pararam mesmo na pandemia. Se há uma parte menos pior disso tudo, se é que dá para dizer isso, é que agora se está debatendo de forma mais incisiva a construção de uma política efetiva para resolver as desigualdades que a gente conhece há tanto tempo — diz a jovem.

Unidas: Inspiradas pelo feminismo, alunas criam coletivos em suas escolas

Rotina na pandemia

Para Juliana, o clima de pandemia e todas as preocupações que a Covid-19 traz têm dificultado que ela consiga criar uma rotina mais regrada. Hoje, a estudante se divide entre os estudos, que organiza por conta própria, o estágio, agora em home office, as tarefas domésticas e as atividades do coletivo Agbara, grupo de mulheres negras que formou com amigas no Colégio Pedro II, onde é aluna. Além disso, ela tem buscado formas de complementar a renda da família. Juliana vive com a mãe, a irmã mais nova e o pai, que é agente de saúde do município e não pode parar de trabalhar durante a pandemia.

— Tem uma questão emocional muito forte. Está difícil estabelecer uma rotina. A gente fica meio baqueada. Ainda não consegui me adaptar e isso atrapalha meus estudos — conta a jovem.

Exaustas: A desafiadora (e sobrecarregada) rotina das mães solo durante a quarentena

A mais de 1,3 mil km de distância de Juliana, na cidade de Rio Verde, no interior de Goiás, a estudante Letícia Martins, de 18 anos, também sofre para conciliar os estudos com o trabalho como atendente de telemarketing de um banco, que desde março executa em casa, no regime de home office. Para complementar a renda, a jovem ainda faz frilas como designer gráfica, mas tem dificuldades para conseguir se concentrar nas atividades, agora que toda a família está confinada em casa. Ela vive com o pai, a mãe e as duas irmãs mais novas, que estão sem aulas.

— A pandemia mudou totalmente a minha rotina. Tive que começar a trabalhar em casa e tem sido muito mais estressante do que trabalhar na própria empresa. Isso afetou muito os meus estudos. Ia fazer um curso preparatório para o Enem no segundo semestre, mas acho que não vou conseguir por causa da Covid-19 — conta Letícia.

A jovem conta que a própria convivência em casa, durante o confinamento imposto pelo coronavírus, a fez mudar os planos: sua primeira opção era cursar Psicologia, mas o período de convivência forçada a fez repensar seu desejo de investir em uma formação que a faria trabalhar diretamente com pessoas. Ela concluiu o ensino médio no ano passado, mas só neste ano pretendia se dedicar ao Enem “pra valer”. Natural de Alagoas, seu objetivo agora é conseguir uma vaga na graduação de Arquitetura de uma das universidades federais do Nordeste.

— Fiquei feliz que pude perceber isso. Se não tivesse ficado em casa, ia acabar optando pela Psicologia e me frustraria. Gosto das ciências humanas, mas prefiro as exatas. Usei esse momento para refletir e repensar minha futura profissão — afirma.

'Eu não tive escolha': crise econômica em consequência do coronavírus aumenta troca de sexo por moradia

O que vem depois?

Para Juliana Andrade, a pandemia deixará marcas profundas na sua geração. Os impactos, para a estudante, vão desde a forma de usar a tecnologia, tanto nas relações de trabalho quando de estudo, ao aprofundamento da crise econômica, que irá impactar o futuro dos jovens que estão iniciando a formação superior e entrando no mercado de trabalho.

— A pandemia é precedida de uma crise que já estávamos carregando há alguns anos. Essas jovens mulheres, que são a maioria no ensino superior, vão terminar os estudos e o que vão poder fazer? Já está na hora de traçar estratégias para reduzir esses impactos — reforça.

Letícia acredita que o impacto que a pandemia terá em sua geração ainda é imensurável, mas espera que ela traga mais sensibilidade:

— Imaginar o futuro, para mim, ainda é muito difícil. O mundo não vai ser mais o mesmo — desabafa, ela que espera que as coisas melhorem: — Após a pandemia, a gente vai ter mais sensibilidade de se colocar no lugar no outro. Espero um futuro em que as pessoas saibam se importar mais com o mundo e com uma sociedade mais igualitária — completa.