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Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A nova educação profissional

A Lei n.º 14.645, que o Congresso aprovou em agosto, ajuda a recolocar o tema da educação profissional na ordem do dia

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Sem que quase ninguém visse, o Congresso Nacional aprovou em agosto passado, por iniciativa da notável e incansável deputada Tabata Amaral, a Lei n.º 14.645, que dispõe que o Brasil estabeleça, no prazo de dois anos, uma nova política nacional de educação profissional e tecnológica. É um texto curto, bastante genérico, mas que inova em ao menos três pontos importantes: o da articulação do sistema escolar com o sistema de aprendizagem, o da organização dos itinerários formativos e o da avaliação desta modalidade de ensino.

O que se chama de “sistema de aprendizagem” é a educação que se desenvolve de forma articulada com o trabalho. Nela, o estudante está vinculado a uma empresa, ganha por isso e, ao mesmo tempo, faz cursos em que adquire de forma mais sistemática os conhecimentos que pratica. Quando se forma, ele já tem, quase sempre, uma boa formação técnica e um lugar no mercado de trabalho. Este sistema se desenvolveu sobretudo na Alemanha, na Suíça e em outros países europeus, é responsável pela alta qualificação da mão de obra desses países e considerado superior ao sistema de educação profissional em escolas separadas. A principal condição para que o sistema funcione é que o setor produtivo se envolva ativamente na qualificação dos aprendizes e se articule com as entidades responsáveis pelos cursos que os alunos devem seguir.

No Brasil, a legislação de aprendizagem acabou se transformando numa obrigação legal para que empresas contratem jovens carentes, com limitações que dificultam que a aprendizagem ocorra pela prática profissional.

A nova lei sobre ensino profissional avança no sentido de que as instituições de ensino reconheçam e validem os conhecimentos adquiridos no trabalho e que se criem estímulos para o envolvimento do setor produtivo com a formação profissional, mas ainda há que desenvolver uma proposta mais articulada de como desenvolver um sistema de aprendizagem que possa ser uma alternativa valorizada à educação formal, e não, simplesmente, assistencial.

A ideia principal por trás dos “itinerários formativos” é que os cursos profissionais não se transformem em becos sem saída que impeçam que o estudante que opte por esta via continue estudando e se qualificando em níveis mais altos. Assim, uma pessoa poderia começar como eletricista e evoluir até ter uma qualificação de engenheiro, tendo seus conhecimentos e experiência prévios reconhecidos e validados. Uma ideia importante, mas que depende, sobretudo, de que as instituições de educação superior se abram para um novo tipo de aluno, com um perfil mais prático.

Finalmente, na avaliação, a novidade é que ela tome em conta, explicitamente, a eficiência das instituições em formar seus alunos e o lugar que eles ocupam depois de formados no mercado de trabalho – muito diferente da avaliação obsoleta que temos hoje no ensino superior, baseada em provas de conhecimentos e indicadores como a titulação formal dos professores.

O elefante na sala do ensino profissional brasileiro, que ninguém menciona, é que ele pretende fazer duas coisas opostas ao mesmo tempo: proporcionar uma alternativa prática de qualificação profissional para o jovem que chega ao ensino médio com grandes dificuldades de seguir os currículos tradicionais; e formar pessoas capazes de lidar com os novos requisitos de um mercado de trabalho cada vez mais exigente em termos das qualificações técnicas e socioemocionais requeridas.

O Ministério da Educação, ao dar para trás com a reforma do ensino médio, insistir no Enem unificado e no modelo elitista dos institutos federais para o ensino profissional, se nega a reconhecer que o problema existe, não cria alternativas de formação e reforça as desigualdades, que nenhuma política de cotas pode compensar. E isso sem dizer que temos pela frente uma profunda transformação no mercado de trabalho, trazida pela automação e a inteligência artificial, que coloca em questão toda a estrutura do sistema de educação regular e profissional que temos até aqui, criando a necessidade de micro credenciais, certificações, sistemas de educação continuada e de reciclagem profissional que não desenvolvemos.

É difícil saber em que esta nova legislação vai resultar, porque vários de seus dispositivos são pouco mais do que expressões de desejo, em ações como “fomento à expansão da oferta de educação profissional e tecnológica em instituições públicas e privadas” ou o “fomento à capacitação digital na educação profissional e tecnológica, de forma a promover a especialização em tecnologias e aplicações digitais”; e outros que seguramente não vão funcionar, como a “instituição de instância tripartite de governança da política e de suas ações, com representação paritária dos gestores da educação, das instituições formadoras e do setor produtivo”, e a articulação desta política com o futuro e incerto plano nacional de educação. Mas ela ajuda a recolocar o tema da educação profissional na ordem do dia, e, por isso, é uma contribuição importante.

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SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Opinião por Simon Schwartzman

Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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