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A juventude trancafiada: ela dá sinais de mau humor, irritação e solidão

Pesquisa inédita revela comportamento atual dos jovens. É fato: o isolamento tem sido duro, mas pode ser uma valiosa lição de vida para essa turma

Por Mariana Rosário Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 abr 2021, 10h20 - Publicado em 2 abr 2021, 06h00

Vitor Aun Kassab, 18 anos
“Eu tinha muita expectativa para o último ano da escola. Queria viajar e fazer tudo a que tinha direito. Foi duro. Porém consegui aproveitar o isolamento para estudar e passei na USP em engenharia. Mas como queria assistir às primeiras aulas na faculdade dentro do câmpus.”

“A proibição foi suspensa hoje. Não mais… máscaras. Tudo aberto também. O Romance de Tarzan está passando no Coliseu, como há cerca de seis semanas. Eu gostaria tanto de poder ir ao cinema assistir ao filme. A escola abre esta semana, na quinta-feira! Você sabia? Como se não pudessem esperar até segunda-feira!” Esse trecho do diário de Violet Harris, uma adolescente de 15 anos de Seattle, nos Estados Unidos, poderia ter sido escrito hoje, hoje mesmo, sem tirar nem pôr — mas tem mais de 100 anos, foi rabiscado em 15 de outubro de 1918, em um dos momentos de abre e fecha da quarentena imposta pela Gripe Espanhola. Ressalte-se que aquela pandemia, na comparação com o surto do novo coronavírus, tinha uma característica assustadora para quem namorava a idade adulta: atingia e matava mais os jovens, filhos de um período histórico em que houve duas tragédias simultâneas, a da saúde e a da I Guerra. Havia pouco respiro e escassa esperança, em um tempo evidentemente sem internet, em que as janelas fechadas isolavam as pessoas do mundo — até que as autoridades sanitárias autorizassem algum sorriso, alguma liberdade celebrada em letras miúdas nas cadernetas carcomidas pelo cotidiano.

Agora é diferente, as válvulas de escape brotam a um toque de dedo no smartphone, nas conversas por Whats­App, nas reuniões por Zoom, nas reclamações diante de intermináveis aulas on-line, apesar do heroico esforço dos professores e diretores de escolas. Os adolescentes não são as vítimas prioritárias do vírus, do ponto de vista epidemiológico e de internações. E, no entanto, a juventude dos anos 20 do século XXI, o nosso tempo, será outra quando o contágio se aquietar, com vacinação em massa e respeito aos cuidados de isolamento.

arte pesquisa jovens

Há uma geração na berlinda e convém estar atento às transformações pelas quais ela passa — e que, se já não brotam em diários, pululam nas redes sociais. Uma pesquisa conduzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) durante a pandemia revela o que vai nas mentes e corações de adolescentes brasileiros de 12 a 17 anos. Há relatos de mau humor, irritação e solidão. Há tristeza. Há dificuldade em manter hábitos saudáveis, como a dieta balanceada (veja o quadro com os principais resultados ao longo desta reportagem). São nós que alcançam os jovens adultos. “Não é exagero dizer que, do ponto de vista psíquico, é o grupo mais afetado”, diz a responsável pelo estudo, Célia Szwarcwald, pesquisadora titular da Fiocruz.

Há uma dificuldade inerente à idade. A adolescência é como uma sinfonia hormonal sem tonalidade definida, de violinos brigando com tubas, sem partitura, irregular — e calhou desse rico e incontrolável período de qualquer vida coincidir com os freios determinados pelo vírus. Uma primeira e evidente má novidade: a distância do toque, do olho no olho, do dia a dia agora intermediado pelas câmeras.

Katherine Martins, 19 anos -
Katherine Martins, 19 anos – (Jonne Roriz/VEJA)

Katherine Martins, 19 anos
“Sinto muita falta do meu grupo de amigos. Nos conhecemos desde pequenos. Era muito comum marcar reuniões na minha casa semanalmente e depois sair para a rua, para as festas. Hoje o contato é via mensagens e vídeos no WhatsApp. Não é a mesma coisa e tampouco é fácil.”

Estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) com 1 516 meninas e meninos que moram no Brasil, com idades entre 11 e 17 anos, mostrou que o exílio forçado e prolongado tem impedido que três em cada dez deles sintam ânimo para praticar atividades simples e naturalmente apreciadas em tempos normais — seja jogar videogame, seja conversar com os amigos. A pandemia fere uma postura seminal da juventude, a possibilidade de experimentar a vida longe dos olhos dos pais — ou pelo menos um pouco distante. “A circulação por ambientes novos nessa época da vida traz referências nas quais meninos e meninas se apoiam para construir a própria individualidade na vida adulta”, diz Paula Peron, professora do curso de psicologia da PUC-SP. “É o tempo da grande descoberta de que o mundo é muito mais diverso que a própria família.”

Não se justifica o injustificável, mas as imagens dos últimos dias de festas clandestinas frequentadas por uma garotada sem máscara em ambientes com pouca ventilação representam um ato extremado (e perigosíssimo) de uma geração contida na marra. Apenas em São Paulo, ao longo do último fim de semana de março, por volta de 100 bares e aglomerações proibidas foram alvo de blitze policiais. Cenas semelhantes foram vistas em Manaus, Rio e Florianópolis. “Há uma questão comportamental muito forte ligada a essa época da vida, que é sentir-se imortal”, diz o infectologista Marcos Boulos, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Tentamos explicar das mais diversas formas quanto é arriscado se expor a esse tipo de evento, mas eles acham que nunca acontecerá algo de ruim com eles.”

Mas pode acontecer, evidentemente, e por ora a única saída é a cautela, compulsória e, para muitos, exageradamente restritiva. As escolas correm para amenizar o desânimo generalizado. No colégio de alto padrão Visconde de Porto Seguro, em São Paulo, ficou combinado que os estudantes que já concluíram o ensino médio poderão voltar à instituição quando houver queda relevante do número de casos em decorrência da Covid-19, que chegou a assustadoras 2 700 mortes na média móvel de sete dias, com mais de 300 000 vítimas. “Esse tipo de atividade tem um ganho inestimável ao construir memórias em uma época tão decisiva da vida”, diz o professor João Roberto de Souza Silva, diretor das classes de ensino médio na instituição. Nos Estados Unidos, a formatura do chamado high school, o último passo antes da formação universitária, não contou com os tradicionais bailes, mas foi comemorada por meio de fotos e faixas na porta das casas e jardins das famílias dos formandos. Talvez não baste, mas é um jeito de tocar o barco, porque viver é preciso.

Viver e viver, apesar dos sustos em torno do que se enxerga lá fora. O vírus ainda não se mostrou letal para os mais jovens, longe disso, mas há uma sombra incômoda, que se avizinha. Por motivos que vão do aumento da exposição ao microrganismo às características das novas cepas, mais agressivas, análise da Fiocruz constatou aumento de casos graves entre homens e mulheres com idades de 20 a 29 anos na ordem de 256% ao longo das dez primeiras semanas de 2021 — e, como consequência, mais hospitalizações. Entre idosos de 80 a 89 anos, a título de comparação, a alta foi de 154,39% — com a vital diferença de que avós e avôs começam a ser vacinados e já desenvolvem os tão desejados anticorpos (leia no quadro ao lado). Ao estender a lupa para outros países, como a França, é possível notar um crescimento até de contaminação entre crianças e adolescentes. Uma análise epidemiológica no país revelou que a faixa etária entre 10 e 19 anos teve cinco vezes mais casos da doença em março do que em janeiro deste ano. Atribui-se a escalada à manutenção do funcionamento das escolas e a algum relaxamento natural, depois de tantos meses, depois de tanto cansaço.

Em meio ao medo, as boas novas são celebradas com incontida euforia. Na quarta-feira 31, o consórcio formado pelas farmacêuticas Pfizer e BioNtech apresentou extraordinários resultados com testes de vacina entre crianças de 12 a 15 anos. Em ensaio clínico com 2 260 voluntários, em quem foram aplicadas duas doses em um intervalo de três semanas, não se verificou um único caso de contágio. O trabalho ainda não foi publicado em revista científica, mas as autoridades de saúde dos Estados Unidos já se organizam para ampliar a reabertura das escolas de ensino fundamental e médio assim que as agulhadas chegarem à turma que mal começou a vida, e, portanto, poderia retomá-la.

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Vito Enzo Barbosa, 24 anos -
Vito Enzo Barbosa, 24 anos – (Jonne Roriz/VEJA)

Vito Enzo Barbosa, 24 anos
“Estava com tudo certo para embarcar para um intercâmbio na Irlanda e tive de cancelar por causa da pandemia. Nas primeiras semanas fiquei perdido e sem perspectiva. Era um sonho que eu cultivei por muito tempo. No fundo sabia que as coisas não passariam de modo rápido. Com a vacina fico mais esperançoso para que tudo se normalize logo.”

À espera do definitivo achatamento das curvas, na fila pela vacina, convém não perder o bom humor. A pandemia, reafirme-se, não durará para sempre e há como enxergá-la de outro modo. A atual situação abre caminho para que os jovens que se aventuram pela primeira vez no mercado de trabalho desenvolvam uma capacidade fundamental para os novos tempos: a adaptação. “O estágio de trabalho em home office é uma boa experiência para que eles sejam mais independentes e aprendam a controlar a própria produtividade”, diz Seme Arone Junior, presidente do Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube). “Mas é preciso que as empresas ofereçam a contrapartida decisiva para esse momento da carreira, as orientações e retornos claros.” A resiliência é também outra palavra-chave usada pelos especialistas em intercâmbios estudantis — atividade que despencou 46% no ano passado em comparação com 2019. Muitos dos alunos que tinham interesse em viajar para fora do país adaptaram-se ao novo cenário por meio de aulas on-line em instituições estrangeiras. “As escolas internacionais decidiram flexibilizar diversas regras e incluíram aulas virtuais no currículo para que estudantes de outros países, como o Brasil, possam aprender com qualidade da própria casa e só precisem viajar quando for seguro”, diz Priscilla Gomes, diretora de eventos da Business Marketing Internacional (BMI), empresa responsável pelo Salão do Estudante, a maior feira do setor no país. “Ninguém precisa desistir do sonho, basta esperar um pouco ou adaptá-lo para a atual realidade.”

Sublinhe-se, então, depois de mais de um ano da eclosão do surto em Wuhan, na China, apesar das agruras, apesar da tristeza, que nem todos guardarão na memória apenas episódios traumáticos do período em que sair de casa representava um grande risco à saúde. Há meninas e meninos que aproveitaram positiva e calorosamente o inesperado período de convivência junto aos pais e sentiram algum alívio nas pressões por vezes impostas no convívio escolar, da sala de aula, do ir e vir diariamente. Esconder-se por trás de uma câmera pode funcionar como escudo. Um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde (NIHR), no Reino Unido, com 1 000 estudantes com idades de 13 a 14 anos em dezessete escolas da Inglaterra, mostrou que os níveis de ansiedade entre a garotada reduziram-se na casa dos 10 % ao longo do período de lockdown. Houve, portanto, um aumento no bem-estar geral. Para os que não estão lidando tão bem com a situação — o que é absolutamente aceitável — é bom relembrar que esta não é a primeira nem será a última vez que a humanidade foi posta em situações-limite. “Os pais podem trazer referências históricas ao conversar com seus filhos”, diz Ilana Pinsky, psicóloga clínica e coautora do recém-lançado livro Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Editora Contexto). “Houve restrição de liberdade e muito receio sobre o futuro ao longo das guerras mundiais e em outras ocasiões de epidemias”, diz Ilana. “Pensando nisso, precisamos aprender que a vida nunca será absolutamente previsível e cabe a nós a adaptação para atravessar as tempestades.” E quando tudo passar, porque passará, com total segurança sanitária, de mãos dadas com a ciência, alguém voltará ao diário, abrirá o Instagram, para anotar, como se a adolescente Violet da Gripe Espanhola olhasse para 2021: “A proibição foi suspensa hoje. Não mais… máscaras. Tudo aberto também”.

Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732

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