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Jade Beatriz

A gente não quer só comida, mas sem comida não dá

Não há como falar de educação sem considerar condições alimentares básicas

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Jade Beatriz

Estudante, é presidenta da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes)

Henrique gostava de rock. Mas não era aquele roqueiro chato da escola que fica sozinho no canto do recreio, com os fones de ouvido no máximo. Ele gostava de conversar com todos, principalmente sobre animes, personagens japoneses, cultura "otaku" e futebol. Torcia para o São Paulo. Apesar de sermos de Fortaleza, quase todo mundo acaba torcendo para um time do Sudeste. Na hora da merenda, a gente volta e meia fazia alguma brincadeira com o tamanho do prato do Henrique. Ele comia muito mesmo. E ainda enchia uma vasilha para levar. Morava com a mãe. O pai tinha ido embora. Um dia, no ensino médio, tivemos uma roda de conversa e Henrique desabafou. Chorou e revelou que a merenda, durante todo o tempo, tinha sido a única refeição do dia para ele e a mãe. Sem a merenda escolar, aquela família teria morrido de fome.

Prato de aluno com arroz e pouco feijão; alimentação escolar, que é a única refeição de muitas crianças e jovens no Brasil, enfrenta piora na qualidade - Marcelo Coutinho/Fian Brasil - Marcelo Coutinho/Fian Brasil

Henrique é um nome fictício de uma história muito real, um amigo que mudou minha vida. Apesar de eu também ser de uma família pobre, da periferia cearense, até ali nunca tinha pensado na merenda como a única fonte real de alimentação para alguém. Mas esta é, infelizmente, a realidade de milhões de jovens e familiares no Brasil. Além de 33 milhões de pessoas passando fome, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), nosso país também vive o empobrecimento radical das crianças. Estudo do IBGE mostra que a fome e a pobreza extrema já alcançam 46,2% da população de 0 a 14 anos. Um triste recorde.

Desde 2017, o repasse federal para a merenda não sofre reajuste. A verba é de R$ 0,36 por estudante do ensino fundamental ou médio, naturalizando a distribuição de bolacha e água, forçando dois alunos a dividirem um único ovo cozido. É urgente o reajuste de 34%, vetado de forma desumana por Jair Bolsonaro.

Precisamos consolidar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) enquanto política de Estado, integrar o abastecimento pela agricultura familiar, consolidar uma rede saudável nas escolas. Não há como falar hoje em educação sem falar nas condições alimentares básicas da juventude. A garantia da merenda deve ser prioridade dos movimentos educacionais, da sociedade e dos governos.

Por isso, nós da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), lançamos uma campanha nacional em defesa da merenda e pela segurança alimentar da juventude. Em alguns estados, como o Pará, muitas escolas não têm nada para oferecer. Em outros, como o Ceará, minha terra natal e também do atual ministro da Educação, há avanços, mas ainda muito a se fazer, principalmente na qualidade e planejamento da merenda.

Infelizmente, a urgência desse tema se sobrepõe a tantas outras da educação brasileira, arrasada pelos anos de Bolsonaro e pelo desmonte desse ministério. Mas precisamos do básico, das condições para podermos seguir. Como diria a famosa música dos Titãs, uma banda que talvez o Henrique goste, a gente não quer só comida. Mas, sem comida, não dá. Vamos à luta!

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