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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A escola que almejamos enquanto viventes

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

28/08/2022 06h00

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- Mãe, a professora mandou fazer um trabalho sobre um cara aí.
- Quem?
- Nunca ouvi falar, um tal de Antônio Conselheiro. Disse que era um beato, que levou um chifre de uma mulher aí, ficou acabrunhado, fugiu pra o mato e se fez religioso, fez voto, virou devoto. Acho que foi isso que ela falou. Daí chamou um monte de gente, criou uma vila, fez uma igreja e tal, voto de voto, lembra eleição, né? Pelo desfecho acho que ele virou político. Aí a polícia matou ele e mandou todo mundo embora, igual faz até hoje e ninguém sabe dizer o que ele era realmente, se era ruim, se era bom.
- Você resumiu horrivelmente a história do legado de Canudos.
- Estou vendendo pelo mesmo preço que me venderam, quem falou dele assim foi a professora. Ela fez a mesma cara que sempre faz quando fala sobre a gente, cara de nojo, acho que ela não vai com a cara dele também.
- Eu conheço esta história e sua professora é preconceituosa.
- Não mãe, esta é a visão dela.
- A visão dela é maquiada com a falta de educação e respeito de sempre. Às vezes penso que o saber deixa uma certa arrogância nas pessoas que estudam para ensinar e elas ficam com não sei que cheio de raiva. Mas isto é problema delas, o nosso lado sempre será o de saber nossos direitos para não ser alvo delas.
- Para quando é o trabalho?
- Vai ser em grupo, só vou assinar mesmo.

E nem pense que eu disse, você tem que gostar, tenho plena consciência que ninguém gosta ou entende tudo. Eu não gosto de matemática, sei o suficiente pra evitar ser passada pra trás com a única matemática que me interessa que me traz dinheiro ou leva. Assim segue a saga do trabalho de Tiana, foi mais ou menos assim que tudo começou. O ano devia ser em dois mil e alguma coisa, havíamos acabado de confirmar que o fim do mundo prometido até então era mentira pentecostal cristã. Nesta época morávamos ainda no Ataliba, num quartinho, num fundo de quintal horrível, passávamos por mais uma provação ou falta de grana, é tudo a mesma coisa, tínhamos acabado de ser despejados daquele quintal da família, porque eu havia casado novamente e mãe não tolerava a ideia de ter outro genro, e ela não tolerava sozinha, nem mãe, nem a família de meu novo marido branco, mas falarei sobre este casamento noutra vez.

Agora vou compor a organização familiar criada por mim a minha confraria, minha galera ou os meus pares. Composta por nada mais nada menos que meus herdeiros e eu; Katia, Katiane, Leandro e Evandro, fizemos um combinado com Tiana, faremos seu trabalho junto com você e você nos paga de alguma forma, aceita? Fechado. Cada um então se propôs a fazer o que dominava, a vida é muito interessante e dinâmica vista desta forma, nosso cômodo era pobre sim, chovia dentro sim, tinha rato sim, qual casa de quem mora na beira do brejo não os têm? Eles são desabrigados como nós, como muita gente. Por isso era importante pra mim manter eles unidos pra um ajudar o outro caso eu chegasse faltar, como fazem os ratos. E ali, se unindo pra fazer o trabalho de Tiana, dávamos a oportunidade de ela não ficar sem nota e vir a repetir o ano. Quem me conhece, sabe que tenho aversão às escolas da minha região, é entrar, ficar o tempo necessário e sair, pouco me renderam em afeto. Me desculpe aquelas escolas que mudaram ou que fazem o papel de humanizar, não foi assim comigo, tampouco com os meus, e eu não fazia por onde gostar dela, que nunca foi de trégua, muito mais trincheira que refúgio.

O trabalho se deu, dali há alguns dias surge o trabalho em grupo mais bem elaborado que eu tive o prazer de encabeçar e fazer parte, pena não poder assinar a obra. Tiana entregou e ganhou um "A" COM LOUVOR de uma professora que não gostava dela, não dela, mas do tom de pele dela, nossa. Era o último ano de Tiana no Leonidas Paiva, oitava série, no próximo ano ela estaria no Alberto Cardoso de Melo. Leandro, que vinha da sétima pra oitava, ocuparia o lugar na escala programada patriarcal estadual.

Um ano se passou, no mesmo período a mesma professora pediu o mesmo trabalho e Leandro fez o trabalho dele sozinho, ele fez uma releitura do desenho que fez pra capa do trabalho de Tiana, ao entregar o trabalho foi humilhado pela professora e teve um zero como nota.
- Você pegou o trabalho da sua irmã - disse ela - Eu lembro bem, até o desenho é o mesmo, não aceito.
Leandro não me contou, mas eu soube, perguntei e ele confirmou. Ela não me convidou, mas eu me convidei e fui até a escola contar a ela a verdadeira história do engano dela.
- Oi mãezinha, veio falar comigo?
É assim que nos chama todo professor hipócrita, no diminutivo.
- Sim, eu soube que você não gostou do trabalho do Leandro.
- É verdade, eu ia chamá-la pra uma conversa, ele pegou o trabalho da irmã e trouxe, isso não posso admitir.
- Você está equivocada, você vai ter que admitir, porque quem não fez o trabalho sozinha foi Tiana.
- Como assim mãe?
- Tiana não gosta de história e não é obrigada a gostar, assim como eu não gosto de leite, de matemática e... Eu tenho a história na ponta do pensamento, eu gosto, e vi aí uma oportunidade. Eu tenho toda a história real de Antônio Conselheiro na cabeça. Minha filha Kátia sintetizou a partir de como eu recontei. Leandro é desenhista nato, o desenho é dele. Evandro organizou ou administrou e Katia fez o design, chame a senhora do que quiser, ou de quadrilha, como estão acostumados a nos classificar, eu chamo de equipe de trabalho. Eu, como chefe da minha família, não vim aqui lhe pedir nada nem me preocupar com a sua opinião. Só vim dizer que vai tirar aquele zero do trabalho dele, porque eu já tirei foto, já registrei em cartório e lhe apresento boletim de ocorrência. O que a senhora fez foi uma agressão.
- Nossa, a senhora já veio armada contra mim e contra a escola.
- Não senhora, eu venho em defesa do meu filho ao direito dele de ter seu desenho preservado. A senhora já o condenou premeditadamente, antes que a senhora me diga que eu não sei educar meus filhos como aqui mesmo numa sala como esta foi dito a minha mãe sobre mim. Eu me ergo me defendo e defendo minha cria, vocês não expulsarão meus filhos daqui como fizeram comigo, porque aqui é um lugar público, e ele fez o que você pediu. Porque nós não temos culpa do ódio que vocês carregam contra nós. Pra que ele não venha ser prejudicado pela sua memória.
- Mas a senhora acha certo fazer o trabalho pela sua filha?
- O que eu acho só diz respeito a mim, e até esta data isto era algo longe do seu conhecimento.

No final da conversa eu já ia com as pernas bambas, eu nem sabia se tinha o direito de dizer tanta coisa, baixou a entidade da cobrança, da vingança em mim, e eu lembrei do meu último dia de aula no Cassio da Costa, diante do tribunal que me julgou. Eu passei cinco anos lavando banheiro, cinco longos anos diante dos olhos daquele tribunal, quando eu expressei os cinco anos numa composição a professora chorou. Não pelo que eu passei, que ela julgou uma invenção da minha cabeça, julgou? Ela presenciou eu limpando banheiros, ela disse que chorou a noite inteira quando leu que eu escrevi na composição que não queria ser professora, mas seria só pra me vingar e fazer alguém lavar banheiro e rasgar o caderno dela como faziam comigo. Ela chorou sobre o que eu escrevi, ela nunca sentiu nem dó, nem arrependimento das maldades que consentiu, permitiu e assistiu fazerem comigo, uma criança que estava ali sobre a guarda delas, já que dizem que professora é segunda mãe, de quem? Fui punida por cinco anos quando escrevi, fui punida e condenada a sair da escola, lembro como se fosse hoje. As mulheres dizendo a minha mãe que ela não soube me educar, e a sugestão? Uma casa de família, um quartinho de empregada sem papel e sem caneta, rodo e vassoura, e uma visita a tua casa uma vez por semana ou por mês ou...

Eu não fui à escola apenas pra fazer justiça, mas sim pra mostrar a ela que meu filho tem quem o defenda, ele não estava só no mundo, era minha obrigação diante do que eu sempre ensinei a ele. Se eu tiver que ir a este lugar por você, vai ser bom que você tenha razão, mas de um jeito ou de outro eu estarei lá, pode contar com isto, eu estarei lá.