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Brasil

'A escola não é uma entidade neutra', diz secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-americanos

Mariano Jabonero faz análise da educação brasileira e condena denúncias contra professores
Mariano Jabonero, secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-americanos Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Mariano Jabonero, secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-americanos Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO - Empossado em julho deste ano, o atual secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), Mariano Jabonero orgulha-se de ter contato direto com ministérios de governos dos 23 países-membros da entidade, apesar das diferenças culturais e linguísticas. A organização, que atua em iniciativas de educação, ciência e cultura, ainda não se reuniu com o governo eleito de Jair Bolsonaro, mas apresentou nesta terça-feira em Brasília o documento “Educação em pauta”, com análises e sugestões para o Brasil e outros países da região. Em entrevista ao GLOBO, Jabonero defendeu a construção de projetos regionais de educação, para além da ideia de que “tudo o que é bom na educação no mundo se faz na Finlândia e em Cingapura”. O espanhol comentou ainda sobre o movimento Escola sem Partido e afirmou que gravar professor em sala de aula só se justifica se for para passar adiante boas práticas.

Uma deputada eleita incentivou alunos a gravarem professores que façam “manifestações político-partidárias ou ideológicas” em sala de aula. Filmar um professor é adequado?

Não é uma prática pedagógica habitual. Existe uma prática mais científica do que pedagógica de filmar cenas de aula, como exemplo de boas práticas. Isso poderia ajudar a formar educadores, com uma finalidade de melhora educativa. Mas sempre com a aprovação explícita e por escrito. As pessoas têm direito sobre sua imagem e devem indicar se querem cedê-la. Sabemos que no sistema educacional do Brasil, que é imenso, certamente há situações singulares todos os dias e podem acontecer coisas insólitas. Mas o que posso dizer é que gravar professores não é algo frequente.

É uma prática com a qual o movimento “Escola sem partido” simpatiza. O aluno deveria ser preservado desse tipo de polêmica?

Estudei Ciências da Educação e Filosofia, fui professor de universidade, e esse sempre foi um tema de debate. O aluno é sujeito de máxima proteção jurídica. Está na Declaração de Direitos da Infância e regulamentado em todos os países, há muitos anos. Dito isso, a escola não é uma entidade neutra. Vivemos em um lugar determinado, com uma cultura determinada. Em países europeus, as escolas são mistas. Quando meninos e meninas são separados, parece estranho, pois turmas mistas são algo típico da cultura ocidental. São vistas como conquista social histórica. Mas nos países árabes, não. Cultura e contexto condicionam. Isso demonstra que a escola não é neutra, ela é parte de uma institucionalidade básica do Estado. Transmite os valores e conhecimentos da sociedade. Existe um currículo, estabelecido por um governo como proposta educativa à sociedade e que cria o seu modelo de cidadão. Achar que a escola deve ser uma redoma de vidro não condiz com a realidade.

E as denúncias?

Denúncia e delação no ambiente escolar não funcionam. Há outros mecanismos de participação. Nas instituições, há conselhos escolares, pais, professores e representantes de alunos. Assim se conversa, dentro da escola. Que esta seja a prática normal, mas delação, não. E gravação, sem autorização prévia ou sem objetivo de melhora educativa, também não funciona. Há um intenso debate sobre o uso de celulares em sala. A França proibiu. Por muito tempo, achava-se que o uso de tablets e celulares seria uma solução para a educação, mas o principal é investir na formação dos professores.

Jabonero: 'O investimento na primeira infância traz retorno maior do que qualquer outro investimento de política social' Foto: Paula Giolito/11-3-2013
Jabonero: 'O investimento na primeira infância traz retorno maior do que qualquer outro investimento de política social' Foto: Paula Giolito/11-3-2013

Quais são os principais pontos do “Educação em pauta”, lançado em Brasília?

Acreditamos que a educação tem elementos vitais. Os ganhadores do Nobel de Economia de 2000, James Heckman e Daniel McFadden, já mostraram que o investimento na primeira infância traz retorno maior do que qualquer outro investimento de política social. Uma criança bem atendida nessa idade tem prognósticos escolar e profissional muito favoráveis. Outro elemento é a boa governança da educação: é preciso investir melhor. Há ainda o ensino bilíngue português-espanhol. Assinaremos esta semana um projeto que incentiva o ensino de português e espanhol nas escolas da fronteira. Já foi aprovado pelos países-membros. Somos uma comunidade linguística forte que precisa se entender.

São propostas que o próximo governo brasileiro deve considerar?

Ainda não tivemos uma conversa formal (com o governo de Jair Bolsonaro) . Um novo governo em um país da região é sempre uma boa notícia, pois significa que a democracia funciona. Democracia implica alternância de poder. Temos uma agenda global compartilhada entre todos os governos e também uma agenda local. Oferecemos reuniões com o novo governo para ver suas prioridades e trabalharmos juntos.

Como avalia o estado da educação no Brasil?

Há uma aposta pela primeira infância, como disse, que é comum a toda a região. Vejo aqui, também, uma preocupação com as escolas rurais, que possuem menos recursos do que as escolas em núcleos urbanos. Outro fator do Brasil, como em outros países da América Latina, é que há que se trabalhar mais intensamente com população indígena e de menos recursos. Outro tema importante são as regiões fronteiriças, e a do Brasil é muito permeável a movimentos de população. Daí esse projeto grande de incluir escolas da fronteira no ensino de português e espanhol para que as crianças se tornem realmente bilíngues, e não falem portunhol ou outra coisa do gênero. Há um entorno geográfico e econômico comum, então temos que trabalhar mais, e juntos. Outro tema que merece mais esforço é o abandono no Ensino Médio, e que afeta principalmente as meninas. Há um abandono prematuro das meninas, muito agudo em zonas rurais, e também uma exclusão progressiva das meninas em estudos de perfil tecnológico e científico, que são os de maior possibilidade de emprego.

Costumamos focar em experiências dos EUA ou de países da Europa que possam ser replicadas aqui. Que casos de sucesso você destacaria em países ibero-americanos?

Existe uma ideia geral de que tudo que é bom na educação é feito na Finlândia, em Cingapura ou na Coreia do Sul. Não concordo. É preciso fugir do colonialismo pedagógico. A Finlândia tem uma população que poderia caber em um bairro de São Paulo, não tem nada a ver culturalmente nem linguisticamente com o Brasil. São exemplos de sucesso no ambiente educativo e com boas práticas a se considerar? Sim. Mas temos que construir nossos próprios modelos também. O país que mais avançou em exames e competências de leitura foi o Peru. Já a melhor prova de competência de formação de leitores foi registrada na Colômbia, que levou adiante um Plano Nacional de Leitura chamado “Leer es mi cuento”. Nosso objetivo é reconhecer boas práticas e divulgá-las.