publicado dia 28/08/2018

A escola dos povos ribeirinhos: entre a potência e os desafios

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Selo Especial Eleições 2018 caminhos para a escola brasileiraNa margem esquerda do maior rio do mundo, o Amazonas, a 70 quilômetros de Manaus (AM), está a escola municipal São Francisco, que atende ribeirinhos das comunidades ao redor.

Lá, chegam diariamente 83 crianças, e dadas as dificuldades que enfrentam, surpreende que a maioria conclua os estudos. “Só pode ser por quererem demais estudar”, diz Maria da Conceição Pinheiro, que há 32 anos dirige a escola.

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Isso porque, antes mesmo do nascer do Sol, e por vezes debaixo das torrenciais chuvas do norte do País, os pequenos já estão à beira do rio esperando, na melhor das hipóteses, por uma lancha.

Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias aborda como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.

Do contrário, encaram embarcações menores e mais suscetíveis a bater em pedras ou a virar por causa dos banzeiros – marolas naturais ou provocadas por embarcações.

Para os povos ribeirinhos, os rios são o cerne da vida: deles extraem grande parte de seus alimentos e deles dependem para ir e vir. Por isso, parte dessas escolas adota um calendário letivo adaptado ao ciclo das águas.

Também por causa das dificuldades de transporte e da distância, faltam professores. A solução para a escola São Francisco foi propor uma troca com uma escola pública da capital, a Nossa Senhora das Graças.

Nesse arranjo, os educadores do sexto ao nono ano se dividem em dois grupos e passam um semestre em cada escola, dormindo em alojamentos ou na casa de membros da comunidade, e retornando para seu lares no final da semana. 

“O acesso a essas escolas é quase sempre complicado. É difícil e custoso fazer o transporte escolar, os professores, a merenda chegar. Os custos são muito mais altos do que a média de outras regiões, por isso o CAQ [Custo Aluno Qualidade] deveria ser diferenciado, a lógica é outra”, diz Nathalia Flores, da Fundação Amazonas Sustentável, OSC cuja missão é conservar as florestas e melhorar a qualidade de vida das populações que nela vivem.

É na região da Amazônia que está a maior parte dos ribeirinhos brasileiros: são 350 comunidades compostas por 37 mil pessoas.

O acesso à internet na região também é precário, conta a diretora Maria da Conceição: “Nós temos internet na escola, mas é muito lenta. Tem vezes que a gente passa semanas sem acesso.”

Os desafios enfrentados pela escola São Francisco são compartilhados pela maioria das escolas à beira dos rios brasileiros, como explica Nathalia: “Tem um rio correndo na porta da sala de aula, mas não há água encanada. Na maioria não tem energia elétrica por rede de distribuição, é ainda por motores a diesel, quem dirá internet. É um cenário de grandes desafios.”

As potencialidades da escola ribeirinha

Engana-se, porém, quem pensa que a região é só desafio e precariedade. Cercados pela maior diversidade de fauna e flora do planeta, em um ambiente de água abundante e ricos saberes culturais, medicinais e de possibilidades de troca com outras comunidades, como as indígenas, essas escolas têm a oportunidade de oferecer uma educação integral.

Maria da Conceição conta que os trabalhos desenvolvidos pela escola, da Educação Infantil ao Ensino Fundamental, envolvem a agricultura familiar e a pesca, principais meios de subsistência dos ribeirinhos, bem como a sustentabilidade, essencial para que os povos continuem a obter recursos.

Em atividade da disciplina de Ciências, estudantes analisam os diferentes tipos de solo no quintal da escola

Em atividade da disciplina de Ciências, estudantes analisam os diferentes tipos de solo no quintal da escola

Crédito: Maria da Conceição Pinheiro

A agricultura e a pesca são muito importantes para eles. Então ensinamos sobre a época certa para pescar determinados tipos de peixes, sobre as plantas. Os alunos vão aos lagos, fazem coleta de informações, e sempre trabalhamos a preservação dos rios, da floresta, dos animais. Todo esse conteúdo faz sentido porque é o que eles vivem”, conta a diretora.

A participação da comunidade também é intensa. Como parte dos pais e avós dos atuais alunos também frequentou a escola, a aproximação fica mais fácil. Maria da Conceição destaca uma parceira especial que ocorreu nas atividades de ciências.

“A agricultura e a pesca são muito importantes para eles. Todo esse conteúdo faz sentido no currículo porque é o que eles vivem”, diz Maria da Conceição

“A dona Hortência Nascimento é uma senhora aqui da comunidade, que sabe muito sobre plantas medicinais, e é nossa parceira, sempre contribuindo com as crianças, mostrando mais da nossa cultura, das plantas, e do linguajar dos ribeirinhos. Nada disso pode ser apagado da nossa cultura.”

Todo esse trabalho de contextualização pedagógica acontece em articulação com os conteúdos curriculares e documentos orientadores, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

“Eu busco unir os conhecimentos curriculares e o preparo para o mundo de hoje com a cultura ribeirinha. Assim, como vários alunos meus já fizeram, eles vão cursar o Ensino Médio na capital ou em outros estados, mas sabem os costumes e a cultura do ribeirinho amazona. É como se ele levasse uma bagagem a mais”, diz Maria da Conceição.

Valorização da cultura dos ribeirinhos

Não são todas as escolas, no entanto, que têm as condições e o apoio para desenvolver um trabalho atento à cultura ribeirinha. O pesquisador e professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Cláudio Gomes da Victória, explica que a maioria das escolas ribeirinhas estão voltadas para o urbano, com um estrutura curricular que não enxerga os potenciais educativos do território.

Cláudio Gomes, da UFAM: “A cultura tem valor para a formação escolar e para definir a finalidade dessa educação”

“É muito negativo desvalorizar os conteúdos locais. A cultura tem valor para a formação escolar e para definir a finalidade dessa educação, que pode ser permanecer na comunidade ou sair e continuar os estudos”, explica Cláudio.

O professor também defende que se crie uma escola que atenda às peculiaridades geográficas do local, bem como uma formação de professores que valorize os processos próprios da comunidade ribeirinha. “Não há formação de professores para pensar uma escola ribeirinha. Muitas vezes ela se confunde com a escola rural, mas não são a mesma coisa”, diz.

Maria da Conceição conta que muitos têm a impressão de que as escolas ribeirinhas “são mais fracas” do que as urbanas. “A escola urbana e a nossa trabalham os mesmos conteúdos. Mas na nossa escola, as crianças continuam aprendendo quando saem da sala de aula, porque o material de estudo deles está por toda parte, é matéria viva à disposição deles, que não acaba quando toca o sinal”, diz.

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