Topo

A educação para todos só será possível com todos

Robson Ventura/Folhapress
Imagem: Robson Ventura/Folhapress
Anna Helena Altenfelder

28/11/2017 11h58

Somos um país diverso, miscigenado, que recebeu e ainda recebe imigrantes de todas as partes do mundo. Orgulhamo-nos com frequência dessa formação multicultural. Contudo, dificilmente percebemos que entre nosso discurso de valorização da diversidade e nossas práticas sociais há uma grande lacuna, que se revela nas desigualdades entre os diversos segmentos de nossa sociedade.

No âmbito da educação, infelizmente, a situação não é diferente. Um estudo recente do movimento Todos pela Educação com base em dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 2015 do IBGE mostra, por exemplo, como nossas práticas escolares têm mantido ou reforçado as desigualdades entre brancos e negros (categoria que, segundo a classificação do IBGE, abarca pretos e pardos). De acordo com o estudo, enquanto 70,7% dos adolescentes brancos de 15 a 17 anos estão no ensino médio, esse índice cai para 55,5% entre adolescentes pretos e 55,3% para adolescentes pardos.

Até os 14 anos, aponta o Todos pela Educação, o percentual de matrículas de negros e brancos é similar, mas a dinâmica da sala de aula e a presença do racismo no ambiente escolar já começa a excluir os estudantes negros. Pesquisa do Cenpec com base em dados da Prova Brasil de 2013 mostram que, ao final do ensino fundamental, o índice de proficiência em português era de 32,3% entre os alunos brancos e caía para 18,34% entre alunos negros. Já em matemática a proficiência de brancos era de 17,01%, enquanto ficava em 7,8% entre negros.

O exemplo da desigualdade racial é talvez o mais gritante, mas poderíamos citar ainda outros exemplos de desigualdades na educação em função de diferenças de gênero, de região do país, de classe social, da existência ou não de algum tipo de deficiência, etc. O fato é que se somarmos as populações historicamente discriminadas, que por isso não têm seu direito à educação garantido, estaremos muito longe de falar de uma minoria. Só a população negra representa 54% do total da população brasileira. Imagine se ainda somarmos a esse percentual a população não-negra de pessoas com deficiência, LGBTs, imigrantes, etc.

A realidade é que somos todos diversos de alguma maneira. Mas nossa escola, com poucas e boas exceções, tende a educar a todos como se fôssemos um único tipo ideal de aluno, ou como se aprendêssemos todos da mesma forma e tivéssemos as mesmas necessidades. Nossa educação precisa sim dar conta de acolher e garantir o aprendizado de todos, mas é preciso lembrar que os sujeitos desse direito são também diversos em raça, etnia, credo, gênero, orientação sexual, idade e origem regional.

É verdade que já houve avanços importantes no reconhecimento dessas diversidades. Alavancadas pelos movimentos sociais, principalmente os de caráter identitário (negros, indígenas, quilombolas, pessoas surdas, etc), as reivindicações pelo reconhecimento das diversidades no ensino ganharam espaço também na legislação.

É o caso, por exemplo, da Lei 11.645/2008, que prevê o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação básica. Mas quando analisamos os currículos e práticas escolares nas salas de aula pelo Brasil afora não é difícil perceber que avançamos pouco nas práticas e que os conteúdos relacionados à história e cultura africana, por exemplo, quando aparecem, são sempre tratados como a história e cultura do outro, quando são também parte da nossa história e da nossa cultura.

Recentemente tive o privilégio de participar do júri do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, e pude perceber como, aos poucos, professores de escolas públicas de todo o Brasil têm conseguido trabalhar mais com temas que dizem respeito à realidade de seus próprios estudantes, permitindo que eles avancem na construção dos significados da educação para suas vidas e no aprendizado em todas as áreas.

É o caso, por exemplo, do trabalho realizado pela professora Rosely Marchetti Honório na EMEF Infante Dom Henrique, no bairro do Canindé, na zona leste de São Paulo, que concentra uma grande população de imigrantes. Rosely, que foi uma das vencedoras do prêmio relatou que, apesar dos esforços em contrário, havia episódios de preconceito na escola.

Para despertar a empatia dos alunos, a professora desenvolveu um projeto que buscou que os alunos resgatassem suas trajetórias familiares, de modo a permitir que todos, sejam eles filhos de brasileiros ou de imigrantes, pudessem reconhecerem seu passado e conhecer a história das imigrações no Brasil ontem e hoje. Numa escola em que um quinto dos alunos são imigrantes e em que a comunicação interna é feita em quatro idiomas (português, espanhol, árabe e inglês), o trabalho fez a diferença.

Em União da Vitória (PR), a professora Gislaine Waltrik, que leciona na Colégio Astolpho Macedo de Souza, estava cansada de ver casos de assédio às alunas e homofobia afastarem os estudantes do ambiente escolar. Ela também acompanhava as histórias de vida de seus alunos e chegou a ter duas alunas transexuais da EJA mortas.

Decidida a virar o jogo, a professora propôs a discussão de gênero em suas aulas de geografia. Ao abordar a noção de espaço, por exemplo, a professora passou a propor que os alunos apontassem quais são os locais que mulheres e homens podem circular e se há diferença de tratamento entre eles, recorrendo também a mapas, tabelas e outros instrumentos. O trabalho, que também foi premiado, é conhecido e compartilhado com as famílias dos estudantes.

A língua era o desafio para os estudantes da professora Elisângela Della-Armelina Suruí, outra premiada pelo Educador Nota 10. A professora da EIEEFM Sertanista Francisco Meirelles, na zona rural de Cacoal (RO), se deparou com o desafio de alfabetizar seus alunos de origem indígena que não tinham o português como primeira língua.

Nesse contexto, os livros didáticos do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), em português, não eram de muita utilidade. Foi então que a professora propôs que a turma produzisse o próprio livro didático em paiter-suruí, sua língua materna, e avançassem assim na alfabetização nos dois idiomas. Com a proposta, Elisângela garantiu o direito à educação bilíngue, que é reivindicada e prevista legalmente para comunidades indígenas, mas também para a comunidade surda que tem Libras como primeira língua.

Estes são alguns dos exemplos de como o reconhecimento da diversidade cultural e dos diferentes saberes e vivências dos estudantes podem fazer a diferença em seu aprendizado. Mas ainda temos muito o que avançar para que possamos superar a separação entre aquilo que é considerado a diversidade, o outro; e aquilo que é considerado a norma. Isso só será possível incorporando ao currículo de todos as temáticas ligadas a essas diversidades que nos compõem.

A Base Nacional Comum Curricular poderá ser um passo importante nessa direção. Ao estabelecer os conhecimentos que são comuns e que todos os estudantes têm o direito de aprender, ela precisa também incorporar as tantas culturas e saberes que nossos sistemas escolares têm sistematicamente marginalizado.

Nossa escola não pode seguir cometendo os mais diversos tipos de exclusões e epistemicídios, isto é, o apagamento de culturas e saberes não-brancos ou não-ocidentais. O desafio é grande, mas a educação só será para todos se for feita com todos.