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Ricardo Silvestre

A Casa-Grande surta quando o filho do porteiro vence

Este aqui chegou à universidade com o Prouni, mas sem nota zero e com muito esforço

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Ricardo Silvestre

Publicitário e especialista em mídias digitais, criou em 2019 a Black Influence, agência especializada em influenciadores negros

Começo pontuando que tive toda a minha formação em escola pública, com notas que geralmente oscilavam entre 8 e 9. Em 2013, fiz o Enem e garanti uma nota que possibilitou a minha inscrição no Prouni (Programa Universidade para Todos). Exigia-se, naquele ano, nota mínima de 450 e avaliação maior que zero na redação. Além de todo o processo burocrático, ainda havia as notas de corte das instituições privadas que ofereciam as bolsas. No meu caso, considerando curso e instituição, a nota deveria ser maior que 600, no geral. Ou seja, nem de longe um processo simples e irresponsável.

Muito se comentou nos últimos dias sobre uma fala controversa de um ministro do atual governo, que tratou de forma preconceituosa os filhos de porteiros que chegam às universidades através de ações afirmativas como o Fies e o Prouni. Segundo o ministro, certa vez ele foi abordado pelo porteiro do seu prédio, dizendo que seu filho havia sido aprovado em um processo seletivo para uma faculdade particular com média zero.

Ricardo Silvestre -  Publicitário e especialista em mídias digitais, criou em 2009 a Black Influence, agência especializada em influenciadores negros
O publicitário Ricardo Silvestre, responsável por agência especializada em influenciadores negros - Bruno Gomes/Divulgação

Como aluno egresso do sistema de cotas do Prouni, posso afirmar que a barra sempre foi mais alta para os contemplados por esses programas. Desde que ingressei na faculdade, em 2014, e até o final do curso de comunicação social com habilitação em publicidade e propaganda, em 2017, a nota mínima para aprovação semestral do curso era 7 (sete) —e eu sempre fiz questão de estar acima dela.

No segundo semestre, por conta do meu bom desempenho acadêmico, fui selecionado para um intercâmbio na Santa Fe University of Art and Design, nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, fui aprovado em um processo seletivo de uma das maiores, mais cobiçadas e premiadas agências de propaganda do país.

Como trabalho desde os 14 anos (meu primeiro emprego foi como menor aprendiz), cheguei ao emprego dos meus sonhos um pouco mais preparado. Era de longe uma das pessoas mais diferentes que trabalhava ali: preto, periférico, bolsista de programa social, trabalhando desde cedo, sem muitas opções de "looks", sem longas viagens internacionais, sem ter experiências pessoais caras para esbanjar nos almoços e papos de corredor. Com isso, eu me sentia deslocado.

A experiência dos sonhos durou pouco mais de um ano. Fui demitido por “não ter o perfil da empresa” e por sempre chegar atrasado, mesmo fazendo quase 80 km de viagem, todos os dias, entre ida e volta para casa —na periferia de Guarulhos—, para o trabalho e a faculdade, em regiões diferentes de São Paulo. Por fim, recebi o conselho de repensar a minha profissão, porque eu "não tinha cara de publicitário".

Depois disso, outras experiências vieram, outras grandes e premiadas agências, e novos sentimentos de deslocamento. Até que um deles me afetou com um "burnout", que fez ressignificar o meu trabalho. Foi quando percebi que precisava atuar de outro modo e me vi obrigado a empreender de forma compulsória ou mudar de profissão. A segunda opção não estava disponível: por todas as conquistas tidas até ali, graças ao Prouni, eu não poderia abrir mão de tudo aquilo.

Foi então que, em 2019, criei a minha própria agência. Uma empresa com propósito, especializada em influenciadores pretos e em comunicação diversa e antirracista. Uma das únicas no mundo com essa atuação. No mesmo ano fui eleito um dos 15 profissionais que ajudaram a construir o mercado de influência nacional e também um dos 30 jovens que lutaram para mudar a indústria da comunicação brasileira. Já em 2020, por minha atuação e contribuição, fui considerado um dos dez profissionais de comunicação do país.

Por tudo isso, o filho do porteiro e da empregada doméstica venceu. Não com nota zero, mas com média dez e acima de todas as expectativas, senhor ministro.

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