Lá Vem o Enem 2022

Por Ana Beatriz Rocha, TV Cabo Branco


Carlos Eduardo tem 23 anos e estuda Relações Internacionais — Foto: Arquivo pessoal

No oitavo período da graduação, Carlos Eduardo ainda se sente um ponto fora da curva. “O curso é muito elitizado, não vejo pessoas como eu na área, tudo reflexo do racismo”. O jovem negro tem 23 anos e estuda Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Natural de São Paulo, veio ao Nordeste ao ser aprovado no Sistema Integrado de Seleção Unificada (Sisu) pela Lei 12.711/2012 (Lei de Cotas).

Assim como aconteceu com Carlos em 2018, este ano 3.448 estudantes entraram na UFPB por cotas, de acordo com a Pró-reitoria de Graduação. O número representa 48,22% do quantitativo geral de matrículas. Ao chegar à primeira década, a legislação enfrenta desafios severos, entre eles os pedidos de revisão que pedem pelo fim do recorte étnicorracial, outros que reivindicam a suspensão total da ação afirmativa

A lei foi aprovada em 2012, sob o governo de Dilma Rousseff, e define que metade das vagas de universidades públicas do Brasil sejam destinadas a estudantes como Carlos Eduardo, que veio da escola pública e enfrentou desafios relacionados à defasagem da grade curricular. De acordo com ele, o aluno de escola pública enfrenta a precarização da educação e, antes, precisava concorrer com quem veio da escola particular. Carlos acha que era uma disputa injusta, principalmente para pessoas negras.

"Agora eu concorro com os meus, e isso ainda aumentou a quantidade geral de vagas, é bom para todo mundo”, relata Carlos.

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Dentro da cota social que define metade das vagas para escolas públicas entra, ainda, a norma de renda. Das vagas para cotas, 50% são para alunos que têm renda mensal familiar inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa, sendo os outros 50% para quem tem renda superior a 1,5 salário mínimo por pessoa.

Como funcionam as cotas raciais?

Diferente do que muitos pensam, na legislação vigente ser um jovem negro e conhecer os desafios do racismo estrutural não bastam para que Carlos Eduardo tenha acesso à universidade pelas cotas.

As vagas para pessoas pretas, pardas, indígenas e pessoas com deficiência são sorteadas dentro da metade para escolas públicas, sem um quantitativo fixo, variando de região para região, a depender da prevalência da população minorizada.

Ao defender a importância da Lei de Cotas como uma política de reparação, Carlos Eduardo afirma que o jovem negro, no Brasil, é visto criminalizadoe afastado dos espaços de desenvolvimento intelectual: "Somos as maiores vítimas da brutalidade policial, ao mesmo tempo que a estrutura nos marginaliza, o conhecimento muda isso, nos faz entender que nosso lugar também é a universidade".

Ele remonta, ainda, ao passado familiar e se emociona ao dizer que é o primeiro da família a chegar próximo de um diploma:

“Minha mãe é uma mulher inteligentíssima, ela sempre diz que seria uma 'doutora' se pudesse, e eu acredito. Mas ela não teve oportunidade. As políticas públicas de inclusão, como as cotas, me garantem que eu possa tentar realizar isso”, desabafa o concluinte.

Carlos acredita que as cotas mudam a perspectiva de uma família inteira — Foto: Arquivo pessoal

As ações afirmativas são, de acordo com o professor Márcio Krauss, de filosofia, medidas do Estado para reduzir as desigualdades sociais. De acordo com ele, o que pode parecer sutil para uma certa parcela, gera representatividade para grupos que não se veem nos espaços de poder.

“Representatividade pode parecer besteira para quem não precisa dela, mas muda. Se um indivíduo pobre, morador da periferia, percebe amigos e familiares entrando na universidade ele passa a acreditar que aquilo é possível”, explica o professor.

O teor de reparação da Lei de Cotas se deve ao passado escravista do Brasil, que submeteu a população negra a quase 400 anos de trabalho forçado e não garantiu políticas de reestruturação dessa população no pós-abolição. Conforme a historiadora e professora da UFPB, Mojana Vargas, as cotas são fruto da resistência da população negra.

Especialistas enxergam Lei de Cotas como principal política de reparação — Foto: Ascom/UFSJ

“Já se falava em política de reparação desde a primeira metade do século XX, quando a população que era escravizada foi largada sem condições mínimas. Isso resultou em uma situação precária de moradia, subemprego, além da violência física e simbólica do racismo estrutural que vivemos no Brasil”, descreve a pesquisadora.

Já segundo o historiador e integrante do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Danilo Santos, a medida é necessária para lidar com realidades atuais do país. “Se o Estado soube criar políticas públicas de segregação no Império, como o impedimento de negros na escola e a proibição de detenção de terras pela população africana no Brasil, esse mesmo Estado precisa criar formas de compensação”, defende.

Ampliação ou fim das cotas?

O texto da lei de 2012 previa que em sua primeira década ela fosse revisada para reformulações e um debate sobre a necessidade de seguir com o projeto. A discussão que deveria acontecer este ano foi postergada para 2023. Atualmente, conforme levantamento da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), mais de 20 processos de revisão estão abertos no Congresso Nacional.

Alguns tratam de formas de ampliação, como o caso de levar as cotas ao ingresso no ensino superior privado, outros tentam limitar que pessoas com ensino superior completo tenham acesso à lei para uma segunda graduação. No entanto, a maior parte das propostas pede pelo estrangulamento dos pontos da legislação. Pedem, principalmente, o fim das cotas raciais.

Esse fim dificultaria o ingresso de estudantes como Ozivan Mendonça. Ele é indígena potiguara, natural do município de Baía da Traição, região composta por diversas aldeias, localizado a 9 quilômetros da capital paraibana. A conquista do diploma universitário é um orgulho para o assistente social formado no início de 2022.

Ozivan fez parte de coletivo de estudantes indígenas que reivindicam condições de permanência — Foto: Arquivo pessoal

“Entrar na UFPB e conquistar o diploma é uma forma de devolver à minha comunidade todo suporte que me fez chegar até aqui. O estudante indígena no Brasil depende de políticas públicas não só de ingresso, mas de permanência. Para falar em cotas devemos falar em ampliação. Quem pede pelo fim não conhece o Brasil real, destaca Ozivan.

Entre os desafios de permanecer, muitos cotistas lidam com a necessidade de sair da cidade natal e sobreviver financeiramente. Os auxílios são uma ferramenta necessária. Além disso, a base curricular atrasada, realidade de muitas escolas públicas do país, podem prejudicar o acompanhamento. A importância de subsídios para permanência esbarra nos recentes cortes de investimentos na educação superior.

As instituições federais sofrem cortes no orçamento desde 2015. Em junho deste ano, um bloqueio de R$ 3,2 bilhões foi anunciado, mas caiu para metade após entidades educacionais e movimentos estudantis se mobilizarem contra.

Com tantos entraves, especialistas como a professora Mojana Vargas temem que a conquista das cotas seja atingida por um retrocesso. Ela acredita que não é possível negar que tudo é fruto da luta constante da população negra, e que é preciso lidar com os desafios presentes do racismo estrutural.

“Ainda temos um quantitativo baixo de docentes negros e indígenas, isso significa que ainda não temos uma geração inteira atingida pelas cotas e, para lidar com o passado, precisamos de muitas gerações”, conclui.

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