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10 anos da Lei de Cotas: como legislação impulsionou ações como a do Magalu

Grupo protesta em favor das cotas raciais na USP, em 2012. Universidade só viria a adotar ações afirmativas em 2016 - Anderson Barbosa/Fotoarena/Folhapress
Grupo protesta em favor das cotas raciais na USP, em 2012. Universidade só viria a adotar ações afirmativas em 2016 Imagem: Anderson Barbosa/Fotoarena/Folhapress

Weudson Ribeiro

Colaboração para o UOL, em Brasília

01/09/2022 04h00

Em 10 anos, a Lei de Cotas promoveu a crescente entrada de estudantes negros em universidades e institutos federais, o que tem pressionado grandes empresas a adotarem ações afirmativas visando à pluralidade nos processos de recrutamento.

Iniciativas como o programa de trainees exclusivo para negros da varejista Magazine Luiza têm se tornado recorrentes. Especialistas em recursos humanos e educadores consultados pelo UOL afirmam que o próximo desafio é conseguir eliminar as diferenças de renda entre brancos e negros.

O que as cotas fazem? O texto da Lei de Cotas, sancionado em 2012 pela então presidente Dilma Rousseff (PT), estabelece que 50% das vagas dos institutos e universidades federais sejam reservadas a estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Nesse grupo, metade deve ter renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo.

A distribuição das vagas por cota racial é feita de acordo com a proporção de pretos, pardos e indígenas na unidade da Federação em que está situada a instituição de ensino, seguindo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esse critério também é aplicado a pessoas com deficiência.

Qual foi o efeito das cotas nas empresas? A Lei de Cotas teve papel seminal para que as empresas privadas passassem a criar medidas próprias a fim de absorver profissionais de grupos sub-representados, diz José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares.

"As empresas seguiram uma tendência impulsionada pelas cotas raciais. A implementação conscientizou cada vez mais a sociedade e soterrou o argumento de que não há negros capacitados para dominar cargos historicamente ocupados por brancos. Do que adiantaria ter um diploma sem conseguir uma chance de trabalhar e ser pago de acordo com a qualificação? É aí que as empresas entram."

Em 2020, a presidente do conselho administrativo do Magalu, Luiza Trajano, afirmou ser defensora das cotas como um "processo transitório" para aliviar desigualdades sociais.

Como a absorção de populações minoritárias mudou as empresas? Para a advogada e professora Alessandra Benedito, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), ao longo de 10 anos, a Lei de Cotas desencadeou uma renovação progressiva da força de trabalho.

"Mais pessoas de grupos minoritários inseridas na força de trabalho das empresas passaram a exigir que fatores como raça ou etnia, classe social, capacidade física e localização geográfica fossem levados em conta na hora de escolher bons profissionais. São grupos historicamente silenciados que, por meio da educação superior, se tornaram ativos na luta por mais equidade nos campos político e econômico", afirma ela.

A avaliação é que líderes com perfis diversos são capazes de pressionar ainda mais por mudanças inclusivas e em prol da pluralidade nas empresas. "A questão racial no Brasil não está resolvida e temos visto um agravamento da discriminação contra negros no Brasil. Essas são preocupações que devem permear o âmbito de todas as pessoas", diz.

Quais são os próximos desafios? Enquanto a inclusão ainda está em curso, especialistas avaliam que o próximo desafio estabelecer equidade salarial entre brancos e negros.

"A diferença salarial no Brasil é impactada pela escravidão e pelas desigualdades derivadas dela, que estruturaram a divisão social do trabalho. Funções sociais são definidas de acordo com a cor da pele. Assim, ainda hoje, postos de trabalho com baixa remuneração, indicativo de menor nível educacional, são mais ocupados por pessoas negras", diz Cléber Vieira, presidente da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros).

Outro ponto a ser combatido é a dificuldade que negros têm de subir na carreira. Para combater o problema, as mudanças devem ser estruturais. "Caso contrário, eliminamos barreiras para o ingresso de estagiários negros, mas, se eles não são efetivados e vão embora ao fim do contrato, não observamos no futuro os resultados dessas ações refletidos nos cargos de chefia", afirma.

Como as empresas encaram suas políticas afirmativas privadas? Levantamento da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial mostra que 68% das empresas brasileiras dizem que programas de diversidade ajudam a melhorar a imagem e reputação organizacional. Na avaliação da fundadora da consultoria de RH EmpregueAfro, Patrícia Santos, mais importante que apostar na pluralidade como estratégia de marketing é aperfeiçoar processos de recrutamento.

Ações para alavancar a carreira de pessoas negras podem ajudar a corrigir o problema. "É necessário mapear onde a presença desses profissionais seria estratégica. Precisamos colocar essas pessoas em posições em que elas consigam influenciar avanços dentro da empresa. É imprescindível conscientizar todas as áreas da importância da diversidade, desde o RH até a alta administração", afirma Júlio César Santos, diretor do Instituto Luiz Gama.

Que tipo de ação as empresas têm feito? O Magazine Luiza é considerado um caso de sucesso nesse sentido. Em 2020, a varejista lançou um programa de trainees voltado exclusivamente para negros. Em duas edições, a ação teve 40 mil inscritos.

Mesmo apontado como crucial para debelar desigualdades, a iniciativa suscitou debates jurídicos. O defensor público Jovino Júnior alegou que o critério de seleção inviabilizaria o acesso de profissionais brancos ao mercado de trabalho e entrou com uma ação contra o programa. O posicionamento foi rebatido pela própria DPU (Defensoria Pública da União), que declarou apoio a medidas que visam aliviar desigualdades sociais.

Uma audiência sobre o caso será realizada em setembro deste ano. Ao UOL, o Magalu informou que invocará durante o encontro um parecer emitido pelo MPT (Ministério Público do Trabalho), em que a procuradora Adriane Reis concluiu que ações afirmativas para negros têm amparo na Constituição Federal e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Discriminação Racial, da qual o Brasil é signatário.

Diretora-executiva de RH do grupo, Patrícia Pugas diz que, além de vagas destinadas a negros, a empresa busca promover equidade de mulheres em relação a homens e a recolocar profissionais com mais de 40 anos. No mesmo caminho, Luiza Trajano nega ter um viés de seleção contra homens: "Somos a favor das mulheres. Agora, a nossa luta é que tenha mulher negra diretora, presidente".

Ainda em 2020, a farmacêutica Bayer também lançou um programa de trainees exclusivo para negros. O banco Itaú também tem adotado políticas afirmativas para ter até 30% de pessoas negras na organização com a entrada de 4.000 colaboradores pretos e pardos nos próximos quatro anos. Ao UOL, o Itaú informou que estima ter, até 2025, 1.300 mulheres em cargos de liderança.